O motivo do filme ter me tocado tanto parecia óbvio para mim, mas lendo online, não encontrei nenhuma crítica que comentasse o que, para mim, é o foco principal do filme: a desconstrução do mito da mulher especial, em todas as suas formas. Cada uma das mulheres da família de Mirabel, a personagem principal, tem um poder especial, e cada um deles representa um dos papéis aos quais as mulheres são subjugadas.
Luiza, a forte |
O motivo pelo qual o filme foi tão poderoso para mim, foi que ele foi muito ruim no começo. Eu não conseguia empatizar com Mirabel no começo. A menina que não tem poderes especiais e fica esperando um milagre me deu uma preguiça... admito que achei ela mimada. Pensei cá com os meus botões: essa menina é muito folgada. Não é assim não, filha! Tem que fazer esforço para ser especial.
E aí apresentaram a Luisa. A irmã Luisa tem força supernatural. Mas, por causa disto, está ansiosa e cansada. E eu identifiquei total. E fiquei com mais raiva do filme ainda. Porque achei um absurdo a Disney criar um personagem incrível de "mulher forte", só para dizer que ela, por dentro, tá cansada, estressada, sobrecarregada. Hércules nunca nem suou... sacanagem.
Isabela, a bela |
Mas aí, apresentaram o dilema da irmã Isabela, linda, perfeita, sempre feliz, sem nunca ter um fio de cabelo fora do lugar, que tem como poder criar flores belas. E o problema dela é que ela ia casar por obrigação, com alguém que ela não ama, só porque é o que esperam dela. E aí tudo clicou no lugar.
O motivo pelo qual eu fiquei com raiva, é exatamente o que o filme critica. Os mitos da mulher especial. Cada personagem é um deles, e eu estava, até esse ponto, defendendo o meu: o da "mulher forte". Este estereótipo é geralmente associado à mãe leoa, à mulher guerreira, e mais recentemente à mulher multi-tarefa. É a mulher que dá conta de tudo, que é o suporte de todos, que diz sim para todo mundo, que carrega o mundo nas costas; mas cujo preço é a ansiedade e a impossibilidade do descanso. A personagem é masculinizada, forte fisicamente, uma referência à mulher que "é quase um homem".
Abuela, a que cuida de todos |
Julieta, a cozinheira |
Pepa, a imprevisível |
Dolores é a prima que tem o poder da audição perfeita. Representa o mito da mulher fofoqueira e que não sabe manter segredos. De todos os personagens é a menos desenvolvida, inclusive porque seu principal dilema é um amor não correspondido, em um filme que, felizmente, não foca muito nos arcos amorosos.
Mirabel, a mulher comum. |
que ajuda, em passos maravilhosos de sororidade, as outras mulheres a se libertarem de seus "poderes" que são praticamente maldições. Não é a toa que quando Mirabel começa a questionar a integridade da casa, as outras mulheres começam a se abrir com ela, e começam a perder seus poderes; começam a se permitir se sentirem fracas (Luisa), não serem perfeitas (Isabela), não cuidar do marido (Julieta) ou da vila (Abuela).
E eu chorando. Porque esta é uma mensagem que nós, mulheres, especialmente mulheres latinas, não estamos acostumadas a ouvir. De que não precisamos ser perfeitas, princesas, especiais. Que somos suficientes.
A parte mais surpreendente para mim foi o conflito com a Abuela. Imagino que a crítica era à mãe, mas dado o péssimo histórico da Disney com mães (ou a falta dela, ou as muitas madrastas), acho que o filme acerta de novo em pular uma geração e colocar a origem do sentimento de inadequação de Mirabel na avó. É muito interessante ver o filme apontar que somos nós, mulheres, principalmente mães, que reproduzimos os estereótipos, e preparamos os meninos e meninas do futuro dentro da visão machista.
Somos nós que comentamos quando as amigas estão acima do peso. Que falamos para nossas filhas como elas tem que se vestir e se comportar. Que damos aos meninos permissão para serem violentos e agressivos porque "meninos são assim mesmo". Que fofocamos e competimos umas com as outras. O grande poder de Mirabel é a sororidade: escutar e entender a luta de todas as mulheres.
Obviamente o patriarcado é o grande culpado, mas o filme acerta muito em mostrar que somos nós, mulheres, que temos o poder de propagar e de quebrar este ciclo. Na minha interpretação, esse é o grande "Bruno" do filme. O filme é uma discussão sobre o machismo e o patriarcado, sem nunca colocar os homens no papel principal. Não falamos sobre o Bruno, porque Bruno sabe que o feminismo, representado por Mirabel, irá quebrar todos estes mitos.
E o que vai acontecer depois, só depende de nós.
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