5 de dezembro de 2021

(Des)Encanto: quebrando o mito da mulher especial

** Atenção! Este post é um grande spoiler. Não continue lendo se não viu o filme ainda. ***

Assistimos à Encanto hoje. A nova animação Disney/Pixar me fez chorar por praticamente um quarto do filme. Ao sair do filme, me senti terminando uma sessão de terapia, daquelas das boas.

O motivo do filme ter me tocado tanto parecia óbvio para mim, mas lendo online, não encontrei nenhuma crítica que comentasse o que, para mim, é o foco principal do filme: a desconstrução do mito da mulher especial, em todas as suas formas. Cada uma das mulheres da família de Mirabel, a personagem principal, tem um poder especial, e cada um deles representa um dos papéis aos quais as mulheres são subjugadas.

Luiza, a forte

O motivo pelo qual o filme foi tão poderoso para mim, foi que ele foi muito ruim no começo. Eu não conseguia empatizar com Mirabel no começo. A menina que não tem poderes especiais e fica esperando um milagre me deu uma preguiça... admito que achei ela mimada. Pensei cá com os meus botões: essa menina é muito folgada. Não é assim não, filha! Tem que fazer esforço para ser especial.

E aí apresentaram a Luisa. A irmã Luisa tem força supernatural. Mas, por causa disto, está ansiosa e cansada. E eu identifiquei total. E fiquei com mais raiva do filme ainda. Porque achei um absurdo a Disney criar um personagem incrível de "mulher forte",  só para dizer que ela, por dentro, tá cansada, estressada, sobrecarregada. Hércules nunca nem suou... sacanagem.

Isabela, a bela

Mas aí, apresentaram o dilema da irmã Isabela, linda, perfeita, sempre feliz, sem nunca ter um fio de cabelo fora do lugar, que tem como poder criar flores belas. E o problema dela é que ela ia casar por obrigação, com alguém que ela não ama, só porque é o que esperam dela. E aí tudo clicou no lugar.

O motivo pelo qual eu fiquei com raiva, é exatamente o que o filme critica. Os mitos da mulher especial. Cada personagem é um deles, e eu estava, até esse ponto, defendendo o meu: o da "mulher forte". Este estereótipo é geralmente associado à mãe leoa, à mulher guerreira, e mais recentemente à mulher multi-tarefa. É a mulher que dá conta de tudo, que é o suporte de todos, que diz sim para todo mundo, que carrega o mundo nas costas; mas cujo preço é a ansiedade e a impossibilidade do descanso. A personagem é masculinizada, forte fisicamente, uma referência à mulher que "é quase um homem". 

Abuela, a que
cuida de todos
Daí para frente, tudo ficou claro. A irmã Isabela representa o mito da beleza, a "feminilidade", quase tóxica, cujo papel, literalmente, é enfeitar o mundo. Para explicitar ainda mais sua "feminilidade", Isabela mora em um quarto completamente cor de rosa. O preço que ela paga é casar com alguém que ela não ama, por causa da família. Um homem lindo e bom partido, que a família escolheu para ela.

A Abuela (avó), embora não tenha poderes, tem a vela mágica que criou toda a vila. Representa a "mulher responsável por todos", que, literalmente, toma conta da cidade toda, dita as regras da família, e decide o que é moral e correto. Simbolicamente, ela faz tudo isso sem a presença do marido. É a simbologia da geração mais velha, e da alta proporção de lares na América Latina que não tem a presença paterna, por violência, escolha ou encarceramento.

Julieta,
a cozinheira
A mãe Julieta tem o poder de curar as pessoas com sua comida. Com isto, ela herda o papel de "mulher responsável por todos" e adiciona o de "boa cozinheira". O preço que pagamos pela ideia da mulher ser naturalmente cuidadora é que esta se torna a justificativa "biológica" para a mulher ser a principal responsável pelos trabalhos domésticos e pelos cuidados dos idosos e crianças. No filme, inclusive, o marido dela é o principal consumidor de suas receitas, para sarar picadas de abelha.

Pepa,
a imprevisível
A próxima é a Tia Pepa, que tem o poder de controlar o clima. Pouco explorada no filme, Pepa parece a única cujo poder tem um lado ruim. Sempre em altos e baixos, representa a mulher que não consegue controlar seus sentimentos, ou que tem que abafá-los. Em vários momentos do filme, sua "nuvem de chuva" aparece, e alguém a critica por isto. Representativa do choro feminino, e da "histeria feminina", Pepa representa o mito de que mulheres são imprevisíveis (como o tempo), e que não sabem se controlar. O preço que ela paga, além de ter seus sentimentos constantemente invalidados, é ser tratada como uma criança sem controle.

Dolores é a prima que tem o poder da audição perfeita. Representa o mito da mulher fofoqueira e que não sabe manter segredos. De todos os personagens é a menos desenvolvida, inclusive porque seu principal dilema é um amor não correspondido, em um filme que, felizmente, não foca muito nos arcos amorosos. 

Mirabel, a
mulher comum.
E Mirabel? Mirabel não é nada disto. Mirabel é a mulher comum. Que tem dúvidas, é inteligente (usa até óculos) e tem um coração imenso (segundo sua mãe). Mas
que ajuda, em passos maravilhosos de sororidade, as outras mulheres a se libertarem de seus "poderes" que são praticamente maldições. Não é a toa que quando Mirabel começa a questionar a integridade da casa, as outras mulheres começam a se abrir com ela, e começam a perder seus poderes; começam a se permitir se sentirem fracas (Luisa), não serem perfeitas (Isabela), não cuidar do marido (Julieta) ou da vila (Abuela).

E eu chorando. Porque esta é uma mensagem que nós, mulheres, especialmente mulheres latinas, não estamos acostumadas a ouvir. De que não precisamos ser perfeitas, princesas, especiais. Que somos suficientes. 

A parte mais surpreendente para mim foi o conflito com a Abuela. Imagino que a crítica era à mãe, mas dado o péssimo histórico da Disney com mães (ou a falta dela, ou as muitas madrastas), acho que o filme acerta de novo em pular uma geração e colocar a origem do sentimento de inadequação de Mirabel na avó. É muito interessante ver o filme apontar que somos nós, mulheres, principalmente mães, que reproduzimos os estereótipos, e preparamos os meninos e meninas do futuro dentro da visão machista.

Somos nós que comentamos quando as amigas estão acima do peso. Que falamos para nossas filhas como elas tem que se vestir e se comportar. Que damos aos meninos permissão para serem violentos e agressivos porque "meninos são assim mesmo". Que fofocamos e competimos umas com as outras. O grande poder de Mirabel é a sororidade: escutar e entender a luta de todas as mulheres.

Obviamente o patriarcado é o grande culpado, mas o filme acerta muito em mostrar que somos nós, mulheres, que temos o poder de propagar e de quebrar este ciclo. Na minha interpretação, esse é o grande "Bruno" do filme. O filme é uma discussão sobre o machismo e o patriarcado, sem nunca colocar os homens no papel principal. Não falamos sobre o Bruno, porque Bruno sabe que o feminismo, representado por Mirabel, irá quebrar todos estes mitos. 

E o que vai acontecer depois, só depende de nós.

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PS 1: Achei particularmente poderosa a solução de que a casa foi reconstruída pela vila. De que todos aqueles que se beneficiaram dos poderes destas mulheres por anos agora são responsáveis por ajudá-las a reconstruir sua vida.

PS 2: Tem mais uma personagem feminina no filme: a casa. A casa é responsável por grande parte das tarefas domésticas, como arrumação e ajuda às personagens principais. Como as milhares de mulheres latinas que trabalham como empregadas domésticas, é uma personagem invisível, sem voz. Essa é uma crítica que precisamos ouvir. Nem a Disney, famosa por empregar ratos e mágica para esconder as tarefas domésticas, conseguiu resolver esse problema. Embora no final do filme a redenção venha para as mulheres da família, a casa que as serve volta a ser o que era. Continua servindo, invisível e muda.

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