5 de dezembro de 2021

(Des)Encanto: quebrando o mito da mulher especial

** Atenção! Este post é um grande spoiler. Não continue lendo se não viu o filme ainda. ***

Assistimos à Encanto hoje. A nova animação Disney/Pixar me fez chorar por praticamente um quarto do filme. Ao sair do filme, me senti terminando uma sessão de terapia, daquelas das boas.

O motivo do filme ter me tocado tanto parecia óbvio para mim, mas lendo online, não encontrei nenhuma crítica que comentasse o que, para mim, é o foco principal do filme: a desconstrução do mito da mulher especial, em todas as suas formas. Cada uma das mulheres da família de Mirabel, a personagem principal, tem um poder especial, e cada um deles representa um dos papéis aos quais as mulheres são subjugadas.

Luiza, a forte

O motivo pelo qual o filme foi tão poderoso para mim, foi que ele foi muito ruim no começo. Eu não conseguia empatizar com Mirabel no começo. A menina que não tem poderes especiais e fica esperando um milagre me deu uma preguiça... admito que achei ela mimada. Pensei cá com os meus botões: essa menina é muito folgada. Não é assim não, filha! Tem que fazer esforço para ser especial.

E aí apresentaram a Luisa. A irmã Luisa tem força supernatural. Mas, por causa disto, está ansiosa e cansada. E eu identifiquei total. E fiquei com mais raiva do filme ainda. Porque achei um absurdo a Disney criar um personagem incrível de "mulher forte",  só para dizer que ela, por dentro, tá cansada, estressada, sobrecarregada. Hércules nunca nem suou... sacanagem.

Isabela, a bela

Mas aí, apresentaram o dilema da irmã Isabela, linda, perfeita, sempre feliz, sem nunca ter um fio de cabelo fora do lugar, que tem como poder criar flores belas. E o problema dela é que ela ia casar por obrigação, com alguém que ela não ama, só porque é o que esperam dela. E aí tudo clicou no lugar.

O motivo pelo qual eu fiquei com raiva, é exatamente o que o filme critica. Os mitos da mulher especial. Cada personagem é um deles, e eu estava, até esse ponto, defendendo o meu: o da "mulher forte". Este estereótipo é geralmente associado à mãe leoa, à mulher guerreira, e mais recentemente à mulher multi-tarefa. É a mulher que dá conta de tudo, que é o suporte de todos, que diz sim para todo mundo, que carrega o mundo nas costas; mas cujo preço é a ansiedade e a impossibilidade do descanso. A personagem é masculinizada, forte fisicamente, uma referência à mulher que "é quase um homem". 

Abuela, a que
cuida de todos
Daí para frente, tudo ficou claro. A irmã Isabela representa o mito da beleza, a "feminilidade", quase tóxica, cujo papel, literalmente, é enfeitar o mundo. Para explicitar ainda mais sua "feminilidade", Isabela mora em um quarto completamente cor de rosa. O preço que ela paga é casar com alguém que ela não ama, por causa da família. Um homem lindo e bom partido, que a família escolheu para ela.

A Abuela (avó), embora não tenha poderes, tem a vela mágica que criou toda a vila. Representa a "mulher responsável por todos", que, literalmente, toma conta da cidade toda, dita as regras da família, e decide o que é moral e correto. Simbolicamente, ela faz tudo isso sem a presença do marido. É a simbologia da geração mais velha, e da alta proporção de lares na América Latina que não tem a presença paterna, por violência, escolha ou encarceramento.

Julieta,
a cozinheira
A mãe Julieta tem o poder de curar as pessoas com sua comida. Com isto, ela herda o papel de "mulher responsável por todos" e adiciona o de "boa cozinheira". O preço que pagamos pela ideia da mulher ser naturalmente cuidadora é que esta se torna a justificativa "biológica" para a mulher ser a principal responsável pelos trabalhos domésticos e pelos cuidados dos idosos e crianças. No filme, inclusive, o marido dela é o principal consumidor de suas receitas, para sarar picadas de abelha.

Pepa,
a imprevisível
A próxima é a Tia Pepa, que tem o poder de controlar o clima. Pouco explorada no filme, Pepa parece a única cujo poder tem um lado ruim. Sempre em altos e baixos, representa a mulher que não consegue controlar seus sentimentos, ou que tem que abafá-los. Em vários momentos do filme, sua "nuvem de chuva" aparece, e alguém a critica por isto. Representativa do choro feminino, e da "histeria feminina", Pepa representa o mito de que mulheres são imprevisíveis (como o tempo), e que não sabem se controlar. O preço que ela paga, além de ter seus sentimentos constantemente invalidados, é ser tratada como uma criança sem controle.

Dolores é a prima que tem o poder da audição perfeita. Representa o mito da mulher fofoqueira e que não sabe manter segredos. De todos os personagens é a menos desenvolvida, inclusive porque seu principal dilema é um amor não correspondido, em um filme que, felizmente, não foca muito nos arcos amorosos. 

Mirabel, a
mulher comum.
E Mirabel? Mirabel não é nada disto. Mirabel é a mulher comum. Que tem dúvidas, é inteligente (usa até óculos) e tem um coração imenso (segundo sua mãe). Mas
que ajuda, em passos maravilhosos de sororidade, as outras mulheres a se libertarem de seus "poderes" que são praticamente maldições. Não é a toa que quando Mirabel começa a questionar a integridade da casa, as outras mulheres começam a se abrir com ela, e começam a perder seus poderes; começam a se permitir se sentirem fracas (Luisa), não serem perfeitas (Isabela), não cuidar do marido (Julieta) ou da vila (Abuela).

E eu chorando. Porque esta é uma mensagem que nós, mulheres, especialmente mulheres latinas, não estamos acostumadas a ouvir. De que não precisamos ser perfeitas, princesas, especiais. Que somos suficientes. 

A parte mais surpreendente para mim foi o conflito com a Abuela. Imagino que a crítica era à mãe, mas dado o péssimo histórico da Disney com mães (ou a falta dela, ou as muitas madrastas), acho que o filme acerta de novo em pular uma geração e colocar a origem do sentimento de inadequação de Mirabel na avó. É muito interessante ver o filme apontar que somos nós, mulheres, principalmente mães, que reproduzimos os estereótipos, e preparamos os meninos e meninas do futuro dentro da visão machista.

Somos nós que comentamos quando as amigas estão acima do peso. Que falamos para nossas filhas como elas tem que se vestir e se comportar. Que damos aos meninos permissão para serem violentos e agressivos porque "meninos são assim mesmo". Que fofocamos e competimos umas com as outras. O grande poder de Mirabel é a sororidade: escutar e entender a luta de todas as mulheres.

Obviamente o patriarcado é o grande culpado, mas o filme acerta muito em mostrar que somos nós, mulheres, que temos o poder de propagar e de quebrar este ciclo. Na minha interpretação, esse é o grande "Bruno" do filme. O filme é uma discussão sobre o machismo e o patriarcado, sem nunca colocar os homens no papel principal. Não falamos sobre o Bruno, porque Bruno sabe que o feminismo, representado por Mirabel, irá quebrar todos estes mitos. 

E o que vai acontecer depois, só depende de nós.

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PS 1: Achei particularmente poderosa a solução de que a casa foi reconstruída pela vila. De que todos aqueles que se beneficiaram dos poderes destas mulheres por anos agora são responsáveis por ajudá-las a reconstruir sua vida.

PS 2: Tem mais uma personagem feminina no filme: a casa. A casa é responsável por grande parte das tarefas domésticas, como arrumação e ajuda às personagens principais. Como as milhares de mulheres latinas que trabalham como empregadas domésticas, é uma personagem invisível, sem voz. Essa é uma crítica que precisamos ouvir. Nem a Disney, famosa por empregar ratos e mágica para esconder as tarefas domésticas, conseguiu resolver esse problema. Embora no final do filme a redenção venha para as mulheres da família, a casa que as serve volta a ser o que era. Continua servindo, invisível e muda.

10 de outubro de 2021

Fui abandonada por Ted Lasso. Mas não vou reverter à barbárie, apesar de ser minoria.

Cadê as minorias mesmo?
 Terminei de assistir à segunda temporada de Ted Lasso.

Me sinto traída, abandonada, enganada.

A primeira temporada, que merecidamente ganhou diversos prêmios, foi um alento de alegria, bondade, bom humor em um ambiente televisivo marcado pela pandemia, tristeza, amargura. 

Ted Lasso chegou prometendo, e entregando, uma nova versão do masculino e do feminino, um mundo onde éramos mais gentis, mais abertos, mais felizes. Engraçado e delicado, confesso que chorei em vários episódios. O final da primeira temporada redefiniu o que era ganhar, o que era uma relação saudável, o que era amizade e amor. Um primor.

Começa a segunda temporada, e o clima é diferente. O primeiro sinal de que as coisas seriam diferentes foi o relacionamento de Sam Obisanya com sua chefa, Rebecca. Em plena era pós #MeToo me pareceu imperdoável que Rebecca ficasse incomodada com o fato de ser mais velha do que ele, mas não de ser chefa dele! Já comecei a torcer contra o casal.  No final da temporada (SPOILER), ele fica sem ela, sem a oportunidade de ser o jogador mais importante de um time no seu próprio país, e decide... abrir um restaurante?

O segundo ponto é o arco de Natan. O personagem vai crescendo durante a segunda temporada, não de uma forma saudável. Natan começa a disputar poder com Ted, mostrando sinais de ganância, superficialidade. Ao questionar o Coach Beard "Vocês às vezes não sentem vontade de ser o chefe?", recebe uma resposta surreal nas linhas de: "Segundo o trabalho de fulana, árvores crescem sem disputar o sol. Elas são uma comunidade socialista, não de competição." Isso não faz o menor sentido em um ambiente onde claramente tem um chefe (Ted). E o que Natan queria era apenas ser reconhecido por seu trabalho e suas ideias, que é exatamente o que Ted faz no final, mostrando que Natan estava certo em querer isto... 

Quando Natan chega a beijar Keeley, em seu projeto de se aproximar do poder pagando por roupas caras e, logo, merecendo a mulher bonita, Roy não considera ele uma ameaça, a ponto de nem se irritar. O problema de Natan não é o que ele faz, ou deixa de fazer. O problema é que ele quer a atenção dos poderosos, Ted e Roy (este último, inclusive, é um dos roteiristas da série). Natan termina seu processo em direção ao sucesso mandando Ted se fuder e indo trabalhar para o "inimigo".

Por fim, e o mais problemático na minha opinião, é o personagem do bilionário Edwin Akufo. Sedutor, conhecedor de arte e boa comida. Oferece a Sam poder, fama e muito dinheiro, além da oportunidade de melhorar seu país natal e ter orgulho de sua origem africana. Bilionário, tem aos seus pés tudo que quer. Entretanto, quando Sam recusa sua oferta, ele reverte à barbárie. Ameaça arruinar a vida de Sam, ao que este responde sorrindo e achando graça. Akufo então descreve como irá defecar na casa onde Sam nasceu, queimar tudo, e defecar novamente em cima das cinzas; enforca um manequim e, novamente, mostra que está defecando sobre ele. Tudo isto sob o sorriso incrédulo de Sam, que parece contente de saber que fez a escolha certa: ser o terceiro jogador em um time pequeno, atrás do homem branco, e da mulher branca que nunca será dele.

O problema com estes arcos é que estas são as poucas representações de minorias com algum tipo de poder na série. Enquanto os personagens brancos (Ted, Rebecca, Keeley, Roy, Coach Beard, Jamie and Higgins) tem seu privilégio garantido e não questionado, a ascensão de Natan ao poder, assim como de Akufo, resulta em personagens cobertos de ódio, rancor, ameaça e traição (e fezes e cuspe...). A mensagem não podia ser mais clara: oferecer às minorias poder é inútil, porque eles não sabem o que fazer com ele. Os exemplos de "boa minoria" são de Sam, obediente, subserviente aos interesses dos brancos, versão moderna do "negro que ri" (sim, ele sorri o tempo todo); e da Dra. Sharon, versão moderna da negra sábia, que, quando trata de Ted Lasso, acaba com ele "fazendo dela uma melhor terapeuta" no processo. Os roteiristas estavam tão desorientados com uma personagem negra inteligente e bem sucedida, que tiveram que desaparecer com ela, literalmente, sem dar uma explicação. A pessoa que veio resolver os problemas do time acabou mentalmente desestabilizada... porque o Ted Lasso resolveu fazer terapia.

Voltando ao meu sentimento de abandono... Terminei a série triste. Tenho visto séries populares fazendo essa gracinha comigo. Eles começam com uma premissa super moderninha:

- Modern Family: família de gays, imigrantes, divorciados;

- Weeds: mãe de família vendendo drogas;

- Ted Lasso: homens sensíveis e gentis, mulheres independentes e inteligentes;

- For All Mankind: mulheres astronautas.

A primeira temporada ganha seu coração, e abre sua mente para o que está por vir. Então, a guinada. Valores conservadores e racistas vão tomando conta. As mulheres pagam preços caros por sua independência (geralmente são bem sucedidas, mas sozinhas e sem amor). As minorias ou apoiam os brancos dominantes, ou são estereotipadas e transformadas em bandidos. Eu ficaria mais triste, se não achasse que é de propósito. Que é uma forma discreta (e eficiente) de furar a bolha, e ganhar os ouvidos de uma platéia jovem, liberal e moderna, lentamente apresentando conceitos e ideias mais velhas do que o futebol.

Agora fico de olho: se tem gente bebendo álcool o tempo todo, já desconfio. Se estão fumando, é batata. Não vou reverter à barbárie. Vou colocar meu ponto de vista, de maneira clara e madura, neste post. E escolher melhor com o que eu gasto meu tempo.

3 de agosto de 2021

Marvel: chega. (ou - Por quê o final de Loki é muito pior do que eu podia imaginar)

Eu não sou uma garota típica. Eu cresci lendo histórias em quadrinhos. E não era turma da Mônica, ou Pato Donald. Eu gostava mesmo era de revistinha de super-herói. O Batman era de longe meu favorito, gastava todo dinheiro que tinha em graphic novels. 

Mas outros heróis como a Liga da Justiça e Homem Aranha também tinham seu lugar no meu coração. Li os clássicos todos, inclusive Crise nas Infinitas Terras. Eu era mais DC do que Marvel, mas comprava a cada 15 dia revistas para acompanhar sagas em diversos volumes. Só parei depois que casei, e foi com imensa tristeza que vendi a coleção quando me mudei para o exterior. 

Então, quando os heróis começaram a aparecer na telona, eu fiquei maravilhada. Não perdi um único filme até hoje. Eu que arrastava marido e amigos para ver na pré-estréia o último fortão de capa e espada voando e socando. 

Quem acompanha esse blog sabe do meu feminismo militante. Eu reconhecia todos os problemas, a objetificação, as saias curtas e os saltos altos. Mas, dava um desconto. Achava que, quanto mais mulheres vissem os filmes pressionassem, mais ia melhorar. Problematizava, pensava em como podia ser melhor, e bola pra frente. E, às vezes, era. 

Capitã Marvel vem à cabeça como a melhor tentativa. Apesar de ainda ser loira, branca e jovem, já era a pessoa mais poderosa do filme, a história era boa, e, supresa, ela que salva todo mundo no final. Parecia uma nova era onde eu ia poder torcer por mulheres também. 

Mas durou pouco. Acabei de terminar a primeira temporada de Loki. Eu já tinha posto a Marvel de quarentena depois de Wanda Vision, por motivos que valem outro post, mas minha filha adolescente falou bem, resolvi dar uma chance.

--- MEGA spoilers daqui para frente --- 

Os primeiros 5 episódios (de 6) são um primor. Idéias interessantes, personagens com profundidade, praticamente o mesmo tempo de tela dos Lokis protagonistas. Me incomodava um pouco ela não ser Loki, ser Sylvie, mas, vá lá, acho que vão explicar depois (não, não explicam). Eles jogam uma bola alta para a galera LGBT, identificando ambos como bi-sexuais, e vai parecendo que o simples fato dela ser mulher faz dela a melhor Loki de todos os tempos. 
  • Pausa para a pulga atrás da orelha número 1: Tem Loki jacaré. Tem, literalmente, dezenas de Lokis. E uma única mulher Loki. Isso cai no velho estereótipo da "mulher especial". Ou seja, mulheres comuns não podem ser heroínas, só as especiais, que, por definição, não são "mulheres de verdade"... mas, ainda estou confiando no futuro desta timeline. 
Em um dos primeiros 5 episódios tem uma cena que me deixou muito desconfortável: a bebedeira no trem. Depois de fazerem um esforço enorme para entrar no trem disfarçados, para carregar o dispositivo que é a ÚNICA chance que eles tem de se salvarem, a Sylvie dorme (aparentemente, só ela precisa disso), e o Loki cai na farra. Bebe todas, arruma briga e ambos acabam atirados para fora do trem e o dispositivo destruído. Logo depois desta cena, ele pede desculpas, e fica TUDO BEM!! O cara acabou de ser irresponsável, destruiu a única esperança dos dois, e a desculpa é: é assim que eu sou. O problema com essa lógica é que homens que bebem demais e maltratam suas companheiras, destruindo a vida de ambos, são muito reais. A série normatiza isso. No final deste mesmo episódio, eles tem uma cena romântica juntos, dando a entender que isso é amor de verdade. A única coisa entre estes dois momentos são eles correndo para tentar alcançar a nave. Ele não faz nada para se redimir, ou dizer que vai ser diferente. Eu já começo a torcer contra eles ficarem juntos. 

Aí a gente chega no último capítulo. De cara, já tem problema sério: ao oferecer aos dois Loki (que, lembra aí comigo, são teoricamente a mesma pessoa) o futuro ideal, o Loki macho tem a opção de, LITERALMENTE, ter todo o poder do mundo, inclusive as Infinity Stones, que, se você acompanha Marvel, é tipo tudo. Enquanto isso, a Loki mulher pode ter... uma vida sem solidão, com boas memórias. OI?!?! Desculpa, ouvi direito? O irmão aqui leva o UNIVERSO conhecido e eu ganho família, cachorro e casa com cerquinha branca? 
  • Pulga atrás da orelha 2 (que agora já virou tipo aranha caranguejeira): A ideia de que mulher só quer casa, família e amor e que, quando não tem, vira frígida, maluca e agressiva é outro estereótipo prá lá de velho, usado para justificar porque a mulher tem que "escolher" entre carreira e amor. Se ela quiser sucesso, vai ter que se conformar em ser infeliz e rancorosa. Essa pegou pesado. Tá ficando difícil de ignorar. 
Mais um tempo depois (quase infinito, porque o diálogo saiu pela janela, o ator que faz o super dono da porra toda está péssimo no papel, e eles repetem tudo 30 vezes para a galera ter certeza que entendeu) e o dilema que se apresenta é: derrubar o status quo (TVA) ou um futuro milhões de vezes pior. 
  • Pulga mordendo e arrancando pedaço da orelha 3 (com arrepios de flashback de Mulan remake): a ameaça de futuro muito pior é, de longe, a ameaça mais eficiente contra derrubar o patriarcado. Esse argumento é a famosa falácia do espantalho, onde a pessoa exagera tanto o que vai acontecer que você fica com medo, mesmo que as consequências reais sejam muito menores (tipo: se deixar casar homem com homem, daqui a pouco tão casando galinha com gente!). Toda vez que alguém defende ditadura perto de mim, dá até arrepio. Mesmo de brincadeira. Pode não, Marvel. 
Aí tudo desgringola de vez. É tanta coisa, que eu vou ter que fazer lista: 

1. A Loka diz que foi pessoal para ela, o CARA (não sei o nome da figura) ter acabado com a vida dela. O CARA responde que tá de boas porque ela fez coisas ruins. Argumento tipo "direitos humanos para pessoas direitas". Tá, combina com a defesa da ditadura. Arrepios novamente.

2. A Loka decide matar o CARA (que tinha acabado de confessar que tava mentindo 10 segundos antes). O Loko pula na frente. Ignora o fato de que ela ia ter rancado o pescoço dele fora porque ninguém pára uma espada no meio do golpe. Vai para a parte que o Loko resolve dialogar e ela sai na porrada com o Loko. Loko todo legalzinho, querendo pensar, e ela sangue nos óio só descendo o cacete. 
  • Pulga já fazendo festa com o percevejo 1 milhão: Mulheres não são racionais. Mulheres são loucas desvairadas. Mulheres não podem ter poder porque elas não sabem pensar na hora, e são muito emotivas. Ai que preguiça... 
3. Aí, a Loka parte o coração do Loko. Ele se abre, frágil, e ela dá um pé na barriga dele (literalmente).  Eu ia respeitar mais o roteiro se, nessa hora, a Marvel tivesse coragem de assumir o "plot twist", e a Loka matasse o Loko. Porque ela não faz isso. Ela manda ele para um outro universo, deixando aberta a porta da dúvida: ela gosta dele ou não. Não tem a menor lógica. Se ela gosta dele, senta e conversa dois minutos (aliás, a escolha lógica nesse momento). Se não gosta, passa a faca e continua na missão. Fica difícil continuar envolvida na trama quando os personagens começam a fazer coisas sem sentido.

4. E aí vem é o momento Incel do negócio. Incel vem de "involuntary celibatary" - celibatário involuntário. É um grupo de homens que tem raiva das mulheres porque eles querem namorar e transar, mas as mulheres teoricamente não gostam de homem decente, só homem rico, então eles não tem companheiras. Geralmente tem ódio de feministas e acreditam que são extremamente injustiçados. Na série, a gente fica uns bons minutos vendo a cara do Loki se transformando. Que o cara bonzinho, que confia em mulher, na verdade se lasca, e que não dá para confiar em mulher mesmo. 

O que tá faltando nesse momento é a perspectiva dela. Se ela não gosta dele, qual o problema? Ela não é obrigada a gostar dele. Aliás, ele não deu lá muitas razões para ela gostar dele. A única perspectiva que a gente tem aqui é a dele, que parece que está "evoluindo e aprendendo a amar", através de tortura (!!!) e insights através de interrogatórios com a polícia (!!!!).  Mas ela está em uma missão, única. De destruir as pessoas que acabaram com a vida dela quando ela era só uma criança. Ele cresceu como um príncipe! Ela foi uma criança foragida vivendo literalmente em zonas de guerra. Ela não era sozinha porque tava a fim. Ela foi uma criança em situação de vulnerabilidade a vida toda! Meia dúzia de encontros com um cara mentiroso, beberrão e egoísta deviam fazer ela mudar de ideia?

5. E termina o episódio com ela matando o cara, e as timelines explodindo. Claro que vai ter outra temporada, e esses finais que não são satisfatórios é a receita atual da Netflix em geral e da Marvel em particular para te viciar. Essa insatisfação associada com um gancho surpreendente para a continuação é necessária para garantir que você volta na próxima temporada. Onde eles vão vender mais tempo para mostrar os personagens bebendo uísque. Aliás, tem multiversos na Netflix, mas a única coisa comum em todos eles é que a galera bebe uísque pra valer. E fuma quando pode. Começa a reparar.

Conclusão final: a Marvel não melhorou. A caricatura de mulher sexualizada, bunduda e peituda e de salto alto foi substituída por outras. Da loirinha bonitinha e comportada que ajuda de vez em quando. Da mulher corajosa e fria que não consegue ser racional, só agressiva. Que o que toda mulher quer é ter casa, comida e roupa lavada. Que relacionamentos bons são com caras abusivos, mentirosos e que bebem. Que se Loki fosse mulher, seria bem pior. Pra mim deu. Não me pegam mais.

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Epílogo: As coadjuvantes. 

Se a representação feminina é problemática, as de mulheres de minorias não ajuda nada. 

Os protagonistas são duas pessoas brancas (três se contar o Moebius). Os negros, embora apareçam e tenham papéis importantes, estão desproporcionalmente do lado errado da história. 

O CARA é negro (além de cientista maluco), assim como a Juíza, que aparentemente sabe de tudo, mas mesmo assim prende criancinhas. A B-15 até que vira de lado, e ajuda os protagonistas e vai presa, depois que é, LITERALMENTE, iluminada pela mulher branca. O Loki negro trai os outros dois Loki, criança e velho, ambos brancos, que não voltam para a TVA e decidem ajudar Loka e Loko sem o menor motivo lógico. A única neutra é a C-20, que acaba assassinada pela TVA. 

Enfim, os negros acabam mortos ou presos. A única que se salva (?) é a Juíza, que ninguém sabe onde está, depois de trair o melhor amigo (branco), mentindo para ele. Não vou me alongar muito nessas análises porque esse não é meu lugar de fala, mas dá para ver claramente que não tá bom isso aí.

27 de março de 2021

Educação: produto, serviço, ou... ideal?

Quando gastamos dinheiro, geralmente estamos comprando um produto ou um serviço.

Se eu compro um carro, estou comprando um produto. Se eu contrato um encanador para trocar a válvula do banheiro, é um serviço.

Quando eu compro um produto, eu tenho sempre razão. Ao comprar um carro, eu espero que ele seja exatamente da cor que eu escolhi, com acessórios específicos, potência do motor que eu preciso, da marca que eu escolhi. O preço depende de quanto produto eu vou receber (dois carros custam o dobro de um carro). A única opção do vendedor é tentar me oferecer exatamente o que eu quero, ou falar que infelizmente não tem. A balança da decisão do "como será feito" pesa para o meu lado.

Quando eu contrato um serviço, é diferente. Eu estou contratando experiência. O motivo pelo qual o encanador troca a válvula e eu não é porque ele sabe melhor do que eu como fazer isto. O preço depende da dificuldade do serviço, mas não necessariamente de quanto tempo vai levar. Qualquer pessoa pagaria mais para um encanador que terminasse o serviço em uma hora do que um que levasse três dias com seu banheiro interditado. O que eu contrato nesse caso é o resultado final, não como o processo será desenvolvido. A balança da decisão do "como será feito" pesa para o lado do especialista (encanador, nesse caso).

A parte mais sensível desta comparação é óbvia: enquanto vender e entregar um produto requer menos conhecimento e experiência sobre o produto, e mais talentos de relacionamento pessoal, serviços dependem de profissionais mais qualificados, com mais experiência, que exigirão salários maiores e que precisam saber exatamente o que estão fazendo.

Mas com educação, estas definições se complicam. Quando um aluno (ou seus responsáveis) contratam um curso, ou pagam uma faculdade, o que exatamente eles estão comprando? Podemos considerar cada curso e o conhecimento derivado dele como um produto? Ou é um serviço, onde o especialista é o educador, e o resultado final é o aprendizado?

Nos meus (quase) 20 anos de docência, tenho observado que o ponto de vista da instituição com relação à isso é fundamental. Se os alunos são considerados consumidores de produtos, a experiência do aluno é o foco. Professores que são muito exigentes, pouco sociáveis, ou mal avaliados pelos alunos, são aconselhados a procurar outro emprego. O foco do processo é em resultados mensuráveis, como número de alunos empregados ao final do curso, percentual de alunos que repetem matérias, número de alunos que desistem do curso. Geralmente os professores mais valorizados são aqueles professores tipo standup show, que dão aulas expositivas engraçadas, divertidas, cheias de piadas e cumplicidade com os alunos.

Se, por outro lado, o ensino é considerado um serviço, é bem diferente. O foco é no processo de aprendizagem. Os professores mais valorizados são aqueles com mais experiência, vivências e metodologias que auxiliam o aluno a aprender de verdade. A independência do aluno é fundamental neste processo, e o processo é muito mais difícil para o aluno. Os professores sabem que não precisam mastigar o conteúdo, e podem cobrar o que consideram imporante na prova. Muitos são avaliados mal pelos alunos, principalmente os que não conseguem acompanhar o ritmo. Mesmo com técnicas de auxílio à aprendizagem, como metodologias ativas, aprender qualquer coisa em profundidade é sempre mais difícil do que superficialmente.

Comparar estes estilos de educação lembra muito as escolhas que fazemos no processo de criar uma criança. Deixar a criança feliz o tempo todo, atendendo a todos os seus mínimos desejos, é uma forma simples de estragar a vida dela. Aprender a lidar com a frustração, desenvolver independência, entender limites e investir energia e tempo em desenvolver suas habilidades é a base para um ser humano completo e que tem orgulho das próprias conquistas.

Mas tem uma terceira opção que não considerei no princípio: também gastamos dinheiro em um ideal. Quando eu faço uma doação para uma ONG, quando eu pago impostos, quando eu doo dinheiro para uma campanha política, eu estou apostando em um ideal. Eu estou escolhendo um mundo melhor, onde o meu dinheiro é um incentivo para mudanças e melhorias em algum aspecto do mundo.

Seymor Papert, um educador maravilhoso, descreve no seu livro Mindstorms que educação deveria sempre ser hard fun (diversão difícil). Que os alunos deveriam ser estimulados a aprender sempre, de forma independente, construtiva, ligada aos seus interesses e suas paixões, seus colegas e família, seu impacto no mundo. Não porque no futuro isto irá dar a eles um diploma (produto), ou porque eles irão receber dos professores instruções e habilidades valiosas (serviço). Carl Rogers, em Aprendizagem Centrada na Pessoa, também defende que crescimento pessoal é uma necessidade intrínsica do ser humano, e que sem isso não é possível ser feliz de verdade (congruência). Papert, Rogers, e seus seguidores, acreditam que o aprendizado é um direito fundamental do ser humano, e que o crescimento de cada indivíduo intelectualmente é o caminho para uma humanidade melhor, mais tolerante, mais completa, mais realizada.

Para mim, Educação é este ideal.

18 de janeiro de 2021

Ansiedade, COVID, Carla, terapia e CBD

Em Novembro fez um ano que mudamos para o Canadá.

2020 foi o ano que ninguém vai esquecer, o ano em que todos nós morremos e fomos para o inferno. O ano que ainda não acabou e que parece sempre piorar. O ano da guerra silenciosa que matou, afastou e dividiu. O ano em que a ficção dos filmes de pandemia se tornou realidade e aprendemos a viver sozinhos e isolados.

Mas, para mim, também foi o ano em que vendi minha empresa, todas as minhas posses pessoais exceto 10 malas grandes, lidei com minha filha adolescente aos prantos pela perda de toda a sua vida, com minha filha pequena aos prantos pelo medo do diferente. Foi o ano em que levei mais tempo para conseguir um emprego do que para ser demitida dele. Foi o ano em que comprei errado e caro tudo que eu já tinha antes. Foi o ano em que, fora  as 3 pessoas que moram comigo, e uma nova amiga, não encontrei com nenhum outro ser humano.

Por isso tudo e muito mais, 2020 foi o ano em que eu comecei a fazer terapia toda semana e a tomar CBD, um componente da maconha que tira a ansiedade. Aqui no Canadá o CBD é legal, você compra direto do governo, entrega em casa, e nem é caro. Ao contrário da maconha, o CBD não dá barato. Ele só desliga a ansiedade, no meu caso.

E, no ano da desconexão, não ser mais ansiosa é uma forma de não ser mais eu mesma. 

Ansiedade faz sentido, evolutivamente. É aquela sensação de que algo muito errado está logo ali, prestes a acontecer. É ter uma parte da população que se preocupa com o leão que vai vir de noite, com o inverno que vai chegar daqui alguns meses, antes de acontecer. O resto da galera toca o barco focando nas tarefas do presente, enquanto os ansiosos ficam avisando: "Gente, vai dar merda." e preparando a cerca, estocando o milho. O ansioso é aquele suricato que fica em pé enquanto a galera come.

Ansioso.

A vida é melhor para todos desse jeito, mas a vida do ansioso é difícil. A gente tem dificuldade de separar o leão real do dragão inexistente, porque o cérebro fica em pânico a maioria do tempo. E o fato de que todo mundo em volta não tá vendo o perigo deixa a gente ainda mais apavorado. Não só o leão está vindo, mas só você percebe isso.

Hoje eu percebo que a ansiedade sempre esteve presente na minha vida. A sensação de que só eu percebia um monte de coisas que podiam dar errado me transformou em uma excelente resolvedora de pepinos. Eu conseguia bolar plano A, B, C e D para tudo, imaginar tudo que ia dar errado, e planejar para cada situação. Não dormia e chorava o tempo todo, mas resolver era comigo mesmo. Quando eu era dona do meu negócio, passava noites em claro preparando para problemas que nunca aconteciam porque eu resolvia antes de acontecer.

Meu lema era: "Espere o melhor, mas se prepare para o pior."

Então veio o COVID. Não tem como se preparar para uma pandemia. Não tem como resolver. Não tem como não ficar em pânico, porque o mundo está acabando, e o melhor que você pode fazer... é não fazer nada. E aí eu quebrei.

Quebrei porque bati nesse problema que não tem solução, e que impede a solução de quase todos os outros problemas, que é real e imediato e imenso. E que eu não tenho nenhum poder sobre ele. Não tem jeito de ir visitar minha família. Não tem jeito de as meninas fazerem novos amigos. Não tem jeito de conhecer outras pessoas.

Então, quando fui demitida sem aviso prévio e sem explicação, foi a gota d'água para minha saúde mental. Passei a chorar todo dia, a não acreditar que algum dia as coisas iam melhorar, entrei em depressão. Comecei a beber mais do que ocasionalmente. Tentei usar cápsulas de maconha (não sei fumar), mas isso só me fez ficar apática, largada no sofá vendo TV o dia inteiro sem nem vontade de me mover. Sinto que minha vida profissional acabou e que me mudar para cá foi o fim da minha carreira.

Neste momento aparece a Carla na minha vida. Prima da madrinha da minha filha, a Carla vem aqui em casa trazer um presente de aniversário para minha filha. Ela mora aqui há muitos anos, e tudo está bem. Nos conectamos imediatamente, e ela me dá muitas dicas de como conseguir outro emprego, me fala das coisas boas de Toronto, promete um futuro melhor baseado nas experiências dela.

Essa sacudida me anima, faço os cursos que ela me indicou, e acabo conseguindo outro emprego, agora em um lugar que eu sinto que posso fazer diferença. Mas o trauma do primeiro emprego continua me assombrando. A cada reunião, a cada final do dia, meu pensamento é: "Ainda não fui demitida. Será que vai ser amanhã?" mesmo sem ter nenhum motivo para isso. Meu cérebro suricato roda a 200% da capacidade, só pensando no pior.

Decido então começar a fazer terapia e tomar CBD. Faço terapia com um Psicólogo Humanista no Brasil, uma vez por semana. O CBD eu comecei tomando todo dia, de noite, antes de dormir. O efeito mais forte dura mais ou menos umas 6 horas, então dá para trabalhar tranquila. Depois de três meses passei para de 2 em 2 dias, e atualmente só tomo quando a ansiedade aperta.

Os efeitos do CDB são muito claros: a ansiedade desaparece. E eu me sinto outra pessoa, porque eu percebo o quanto meu humor, minhas escolhas, meus pensamentos são dominados por esta sensação permanente de desastre eminente. Começo a esquecer de fazer coisas (porque não estou constantemente repassando minha lista de afazeres mentalmente), começo a ter tempo livre (porque não estou adiantando coisas que talvez eu não tenha tempo de fazer amanhã), paro de brigar com todo mundo para cada um fazer suas tarefas (porque eu não to fazendo nem as minhas). No geral, paro de me importar tanto com tudo. Ao contrário da depressão que me desliga, o CBD me desacelera. Fico mais atenciosa, mais paciente, mais focada.

A terapia me ajuda a dar outros passos. Me ajuda a aceitar minhas limitações e a falar dos meus medos. Me ajuda a aceitar que o futuro é incerto e que eu não controlo quase nada. O CBD me dá estabilidade suficiente para conseguir falar destas coisas sem chorar compulsivamente, e, aos pouquinhos, vou me libertando do medo de ser despedida novamente, do mundo acabar, de todo mundo morrer.

Não está bom ainda. Talvez nunca fique. O COVID veio para nos mostrar o quanto somos vulneráveis e que, apesar de todo o imenso progresso da ciência neste ano, nossa sociedade mudou irremediavelmente. Os impactos na economia, na educação, nas relações pessoais, na política, serão profundos. Meu cérebro bom de prever consequências indesejadas sabe que nosso pós-guerra será tão duro quanto a guerra. E que a guerra ainda está longe de acabar. Que a vacinação é só a primeira etapa, mas que a reconstrução da nossa sociedade será longa e difícil.

Enquanto isso, aprendo a encontrar alegria em pintar uma cópia do retrato do meu avô, em cozinhar, em voltar para este blog. Vida que segue.

Cópia de retrato de Sálvio de Oliveira. Original pintado por Inimá de Paula.


A Última Guerra

 O último mês viu o nascimento do ChatGPT . Pela primeira vez, um programa de computador é capaz de responder à perguntas como um ser humano...