30 de dezembro de 2016

Por quê somos tão poucas?

Minha amiga Daniela Lacerda me mandou um artigo interessante sobre a queda no número de mulheres formando em Ciência da Computação que aconteceu depois da década de 80: Quando as mulheres pararam de programar? (em inglês)

O artigo começa com o gráfico abaixo, que mostra (em vermelho) que o número de mulheres na Ciência da Computação cresce a partir da década de 60, mas começa a cair na década de 80 e atualmente se encontra no menor percentual desde 1975:


O texto é interessante, mas ele me parece meio inocente, talvez equivocado. O texto propõe que uma razão possível (e sugere que deve ser uma razão importante) das mulheres terem saído do mercado de programação seja cultural, mais especificamente, que meninas não ganharam computadores para brincar quando eram crianças, meninos ganharam. 

Eu concordo que esta pode ser uma razão com efeito pequeno (ver mais abaixo), mas acho que a questão principal é dinheiro, mais precisamente, quanto de dinheiro a profissão paga.

Até a década de 80, programar era um trabalho que mulheres que tinham graduado em Matemática assumiam, pois haviam muitas mulheres que faziam matemática para… dar aulas! (Ver a história completa em inglês em: http://www.npr.org/sections/alltechconsidered/2014/10/06/345799830/the-forgotten-female-programmers-who-created-modern-tech). Haviam muitas mulheres nesta área, porque, como hoje, esta é uma profissão de baixa remuneração.

Mas na década de 80 a profissão de programador foi se tornando cada vez mais presente, mais complexa, e começou a pagar cada vez mais. Toda profissão que paga bem tende a expulsar as mulheres do mercado, como mostram os gráficos (atuais) abaixo sobre a participação feminina nas profissões mais bem pagas e menos bem pagas nos EUA (fonte: https://www.dol.gov/wb/stats/highest_lowest_paying-occupations_2014.htm).
As 25 profissões com maior remuneração nos EUA (2014) e sua remuneração. Homens são representados em verde, mulheres em roxo e ambos os sexos em cinza. Note que as mulheres não são nem representadas em 14 das 25 profissões, e que, quando aparecem, seu salário é sempre mais baixo (70% a 87% do equivalente masculino).
Separação das 25 profissões com melhor remuneração separadas por gênero (mulheres roxo e homens verde). Note que as mulheres são minoria em todas as profissões, exceto Pharmacists.
Separação das 25 profissões com pior remuneração por gênero (mulheres em roxo e homens em verde). Note que as mulheres são maioria em quase todas, exceto trabalhadores rurais, cozinheiros, zeladores, açougueiros, e carregadores).

Fica claro que as mulheres não só ganham menos do que os homens (primeiros gráfico), mas elas são muito mais representativas em profissões que pagam menos (dois gráficos seguintes).

Os motivos desta separação por renda são muitos, sendo os principais:
  1. Maior dedicação ao trabalho masculina - por não ter que se dedicar à família e à casa da mesma forma que a mulher.
  2. Maior mobilidade geográfica masculina - a mulher muda de cidade para acompanhar o marido, o marido raramente muda para acompanhar a mulher.
  3. Preconceito - como no filme “Sushi à la mexicana”, que mostra que existiam “razões” intrínsecas para mulheres não serem sushi chefs, como “mãos de mulheres são muito quentes” e “o perfume feminino atrapalha o gosto da comida”. Esta é uma forma excelente de excluir 51% dos seus competidores sem eles nem terem a chance de tentar. Da mesma forma, a “inocente” ideia de que mulheres são mais emocionais (em oposição aos homens mais “racionais) tornaria as mulheres naturalmente incompetentes em áreas como Programação e Matemática.
  4. Necessidade feminina de horários flexíveis (por causa do cuidado com crianças e idosos), afastando-as de cargos de maior responsabilidade, dedicação e remuneração.
  5. Menor investimento inicial na educação e preparação de meninas - esta é a razão dada no artigo original, mas é muito mais complexo do que só “dar computador de presente na infância”. Tem também: a) falta de incentivo à carreira, à ir a escola e à aprender matemática; b) maior valorização do casamento do que do diploma da mulher; c) cobrança para “não ser mais esperta que o namorado”, “não ficar para titia”; d) punição social se a mulher se dedicar mais ao sucesso pessoal do que às relações sociais.
  6. Assédio e intimidação em profissões que são majoritariamente masculinas apoiadas pela cultura do estupro - eu e diversas colegas podem conter as vezes em que foram assediadaspor professores na faculdade, intimidada e caluniada em empregos, e desencorajadas por parentes, colegas e professores.
Por isto tudo, acredito que, sim, devemos incentivar meninas e meninos a usarem computadores de forma produtiva o mais cedo que eles puderem (e gostarem), e é isto que fazemos na Just CODING. Inclusive incentivamos a participação de meninas em nossas propagandas, comunicações e damos desconto de 10% para meninas e mulheres em nossos cursos.

Mas não tenho a ilusão de que apenas esta mudança cultural será suficiente para acabar com esta diferença tão gritante. Precisamos lutar para que mulheres estejam em TODAS as profissões bem remuneradas, para que o "glass ceiling"* desapareça em todas as profissões. 

Só assim cada menina poderá tentar ser o que quiser (porque conseguir depende de milhões de outras variáveis, como sorte, cor da pele, país que nasceu e momento político-econômico).  Não é muito animador, mas é preciso conhecer a realidade que queremos mudar para começar a mudá-la.

Prepare for the worst, and hope for the best. 
(Prepare-se para o pior, e espere o melhor)


* glass ceiling: termo para a barreira invisível que impede as mulheres de alcançarem os postos mais altos de comando, ou as profissões mais bem remuneradas.



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