3 de agosto de 2021

Marvel: chega. (ou - Por quê o final de Loki é muito pior do que eu podia imaginar)

Eu não sou uma garota típica. Eu cresci lendo histórias em quadrinhos. E não era turma da Mônica, ou Pato Donald. Eu gostava mesmo era de revistinha de super-herói. O Batman era de longe meu favorito, gastava todo dinheiro que tinha em graphic novels. 

Mas outros heróis como a Liga da Justiça e Homem Aranha também tinham seu lugar no meu coração. Li os clássicos todos, inclusive Crise nas Infinitas Terras. Eu era mais DC do que Marvel, mas comprava a cada 15 dia revistas para acompanhar sagas em diversos volumes. Só parei depois que casei, e foi com imensa tristeza que vendi a coleção quando me mudei para o exterior. 

Então, quando os heróis começaram a aparecer na telona, eu fiquei maravilhada. Não perdi um único filme até hoje. Eu que arrastava marido e amigos para ver na pré-estréia o último fortão de capa e espada voando e socando. 

Quem acompanha esse blog sabe do meu feminismo militante. Eu reconhecia todos os problemas, a objetificação, as saias curtas e os saltos altos. Mas, dava um desconto. Achava que, quanto mais mulheres vissem os filmes pressionassem, mais ia melhorar. Problematizava, pensava em como podia ser melhor, e bola pra frente. E, às vezes, era. 

Capitã Marvel vem à cabeça como a melhor tentativa. Apesar de ainda ser loira, branca e jovem, já era a pessoa mais poderosa do filme, a história era boa, e, supresa, ela que salva todo mundo no final. Parecia uma nova era onde eu ia poder torcer por mulheres também. 

Mas durou pouco. Acabei de terminar a primeira temporada de Loki. Eu já tinha posto a Marvel de quarentena depois de Wanda Vision, por motivos que valem outro post, mas minha filha adolescente falou bem, resolvi dar uma chance.

--- MEGA spoilers daqui para frente --- 

Os primeiros 5 episódios (de 6) são um primor. Idéias interessantes, personagens com profundidade, praticamente o mesmo tempo de tela dos Lokis protagonistas. Me incomodava um pouco ela não ser Loki, ser Sylvie, mas, vá lá, acho que vão explicar depois (não, não explicam). Eles jogam uma bola alta para a galera LGBT, identificando ambos como bi-sexuais, e vai parecendo que o simples fato dela ser mulher faz dela a melhor Loki de todos os tempos. 
  • Pausa para a pulga atrás da orelha número 1: Tem Loki jacaré. Tem, literalmente, dezenas de Lokis. E uma única mulher Loki. Isso cai no velho estereótipo da "mulher especial". Ou seja, mulheres comuns não podem ser heroínas, só as especiais, que, por definição, não são "mulheres de verdade"... mas, ainda estou confiando no futuro desta timeline. 
Em um dos primeiros 5 episódios tem uma cena que me deixou muito desconfortável: a bebedeira no trem. Depois de fazerem um esforço enorme para entrar no trem disfarçados, para carregar o dispositivo que é a ÚNICA chance que eles tem de se salvarem, a Sylvie dorme (aparentemente, só ela precisa disso), e o Loki cai na farra. Bebe todas, arruma briga e ambos acabam atirados para fora do trem e o dispositivo destruído. Logo depois desta cena, ele pede desculpas, e fica TUDO BEM!! O cara acabou de ser irresponsável, destruiu a única esperança dos dois, e a desculpa é: é assim que eu sou. O problema com essa lógica é que homens que bebem demais e maltratam suas companheiras, destruindo a vida de ambos, são muito reais. A série normatiza isso. No final deste mesmo episódio, eles tem uma cena romântica juntos, dando a entender que isso é amor de verdade. A única coisa entre estes dois momentos são eles correndo para tentar alcançar a nave. Ele não faz nada para se redimir, ou dizer que vai ser diferente. Eu já começo a torcer contra eles ficarem juntos. 

Aí a gente chega no último capítulo. De cara, já tem problema sério: ao oferecer aos dois Loki (que, lembra aí comigo, são teoricamente a mesma pessoa) o futuro ideal, o Loki macho tem a opção de, LITERALMENTE, ter todo o poder do mundo, inclusive as Infinity Stones, que, se você acompanha Marvel, é tipo tudo. Enquanto isso, a Loki mulher pode ter... uma vida sem solidão, com boas memórias. OI?!?! Desculpa, ouvi direito? O irmão aqui leva o UNIVERSO conhecido e eu ganho família, cachorro e casa com cerquinha branca? 
  • Pulga atrás da orelha 2 (que agora já virou tipo aranha caranguejeira): A ideia de que mulher só quer casa, família e amor e que, quando não tem, vira frígida, maluca e agressiva é outro estereótipo prá lá de velho, usado para justificar porque a mulher tem que "escolher" entre carreira e amor. Se ela quiser sucesso, vai ter que se conformar em ser infeliz e rancorosa. Essa pegou pesado. Tá ficando difícil de ignorar. 
Mais um tempo depois (quase infinito, porque o diálogo saiu pela janela, o ator que faz o super dono da porra toda está péssimo no papel, e eles repetem tudo 30 vezes para a galera ter certeza que entendeu) e o dilema que se apresenta é: derrubar o status quo (TVA) ou um futuro milhões de vezes pior. 
  • Pulga mordendo e arrancando pedaço da orelha 3 (com arrepios de flashback de Mulan remake): a ameaça de futuro muito pior é, de longe, a ameaça mais eficiente contra derrubar o patriarcado. Esse argumento é a famosa falácia do espantalho, onde a pessoa exagera tanto o que vai acontecer que você fica com medo, mesmo que as consequências reais sejam muito menores (tipo: se deixar casar homem com homem, daqui a pouco tão casando galinha com gente!). Toda vez que alguém defende ditadura perto de mim, dá até arrepio. Mesmo de brincadeira. Pode não, Marvel. 
Aí tudo desgringola de vez. É tanta coisa, que eu vou ter que fazer lista: 

1. A Loka diz que foi pessoal para ela, o CARA (não sei o nome da figura) ter acabado com a vida dela. O CARA responde que tá de boas porque ela fez coisas ruins. Argumento tipo "direitos humanos para pessoas direitas". Tá, combina com a defesa da ditadura. Arrepios novamente.

2. A Loka decide matar o CARA (que tinha acabado de confessar que tava mentindo 10 segundos antes). O Loko pula na frente. Ignora o fato de que ela ia ter rancado o pescoço dele fora porque ninguém pára uma espada no meio do golpe. Vai para a parte que o Loko resolve dialogar e ela sai na porrada com o Loko. Loko todo legalzinho, querendo pensar, e ela sangue nos óio só descendo o cacete. 
  • Pulga já fazendo festa com o percevejo 1 milhão: Mulheres não são racionais. Mulheres são loucas desvairadas. Mulheres não podem ter poder porque elas não sabem pensar na hora, e são muito emotivas. Ai que preguiça... 
3. Aí, a Loka parte o coração do Loko. Ele se abre, frágil, e ela dá um pé na barriga dele (literalmente).  Eu ia respeitar mais o roteiro se, nessa hora, a Marvel tivesse coragem de assumir o "plot twist", e a Loka matasse o Loko. Porque ela não faz isso. Ela manda ele para um outro universo, deixando aberta a porta da dúvida: ela gosta dele ou não. Não tem a menor lógica. Se ela gosta dele, senta e conversa dois minutos (aliás, a escolha lógica nesse momento). Se não gosta, passa a faca e continua na missão. Fica difícil continuar envolvida na trama quando os personagens começam a fazer coisas sem sentido.

4. E aí vem é o momento Incel do negócio. Incel vem de "involuntary celibatary" - celibatário involuntário. É um grupo de homens que tem raiva das mulheres porque eles querem namorar e transar, mas as mulheres teoricamente não gostam de homem decente, só homem rico, então eles não tem companheiras. Geralmente tem ódio de feministas e acreditam que são extremamente injustiçados. Na série, a gente fica uns bons minutos vendo a cara do Loki se transformando. Que o cara bonzinho, que confia em mulher, na verdade se lasca, e que não dá para confiar em mulher mesmo. 

O que tá faltando nesse momento é a perspectiva dela. Se ela não gosta dele, qual o problema? Ela não é obrigada a gostar dele. Aliás, ele não deu lá muitas razões para ela gostar dele. A única perspectiva que a gente tem aqui é a dele, que parece que está "evoluindo e aprendendo a amar", através de tortura (!!!) e insights através de interrogatórios com a polícia (!!!!).  Mas ela está em uma missão, única. De destruir as pessoas que acabaram com a vida dela quando ela era só uma criança. Ele cresceu como um príncipe! Ela foi uma criança foragida vivendo literalmente em zonas de guerra. Ela não era sozinha porque tava a fim. Ela foi uma criança em situação de vulnerabilidade a vida toda! Meia dúzia de encontros com um cara mentiroso, beberrão e egoísta deviam fazer ela mudar de ideia?

5. E termina o episódio com ela matando o cara, e as timelines explodindo. Claro que vai ter outra temporada, e esses finais que não são satisfatórios é a receita atual da Netflix em geral e da Marvel em particular para te viciar. Essa insatisfação associada com um gancho surpreendente para a continuação é necessária para garantir que você volta na próxima temporada. Onde eles vão vender mais tempo para mostrar os personagens bebendo uísque. Aliás, tem multiversos na Netflix, mas a única coisa comum em todos eles é que a galera bebe uísque pra valer. E fuma quando pode. Começa a reparar.

Conclusão final: a Marvel não melhorou. A caricatura de mulher sexualizada, bunduda e peituda e de salto alto foi substituída por outras. Da loirinha bonitinha e comportada que ajuda de vez em quando. Da mulher corajosa e fria que não consegue ser racional, só agressiva. Que o que toda mulher quer é ter casa, comida e roupa lavada. Que relacionamentos bons são com caras abusivos, mentirosos e que bebem. Que se Loki fosse mulher, seria bem pior. Pra mim deu. Não me pegam mais.

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Epílogo: As coadjuvantes. 

Se a representação feminina é problemática, as de mulheres de minorias não ajuda nada. 

Os protagonistas são duas pessoas brancas (três se contar o Moebius). Os negros, embora apareçam e tenham papéis importantes, estão desproporcionalmente do lado errado da história. 

O CARA é negro (além de cientista maluco), assim como a Juíza, que aparentemente sabe de tudo, mas mesmo assim prende criancinhas. A B-15 até que vira de lado, e ajuda os protagonistas e vai presa, depois que é, LITERALMENTE, iluminada pela mulher branca. O Loki negro trai os outros dois Loki, criança e velho, ambos brancos, que não voltam para a TVA e decidem ajudar Loka e Loko sem o menor motivo lógico. A única neutra é a C-20, que acaba assassinada pela TVA. 

Enfim, os negros acabam mortos ou presos. A única que se salva (?) é a Juíza, que ninguém sabe onde está, depois de trair o melhor amigo (branco), mentindo para ele. Não vou me alongar muito nessas análises porque esse não é meu lugar de fala, mas dá para ver claramente que não tá bom isso aí.

A Última Guerra

 O último mês viu o nascimento do ChatGPT . Pela primeira vez, um programa de computador é capaz de responder à perguntas como um ser humano...