29 de outubro de 2012

Sou mulher, mas sou limpinha

Li esta semana (super atrasada), que em Maio deste ano um passageiro se recusou a voar em um avião da TRIP alegando que não voaria com um piloto mulher.


"Feminismo é a idéia radical
que mulheres são gente"
Até aí, tem troglodita sobrando no mundo mesmo, não me espanta. O que me espantou foi o tom da reportagem "Preconceito em Confins", na revista Veja BH, que teoricamente estaria defendendo a pilota:

"Pilotar jatos não é nenhuma novidade para a mineira Betânia Porto, de 34 anos. Só na Trip Linhas Aéreas ela já trabalha há quase uma década. Em seu currículo, constam mais de 3 000 horas de voo. Sua experiência, porém, nem sequer foi considerada pelo engenheiro Jefferson Jaime Cassoli..."

Sei que a maioria das pessoas, ao ler esta reportagem, não vai se espantar. O preconceito da Veja, ao contrário do preconceito do engenheiro, não é óbvio. 

A revista defende a pilota e critica a atitude do passageiro não porque ela é mulher, mas porque ela é competente. Me lembra uma frase antiga (HORROROSA), que dizia: "Fulana é negra, mas é limpinha." Ou seja, o fato dela ser negra é "compensado" pelo fato de ser limpinha, gerando quase uma neutralidade. 

Ao ler a reportagem, vi isso: a pilota é mulher, mas é competente. O fato de ser mulher (grave defeito) é compensado pela competência (inesperada), que é inclusive atestada por um homem: 

“Ela foi a primeira mulher a quem instruí, é aficionada da aviação”, lembra o professor José Efigênio Dionísio da Silva, que deu aula a Betânia em 1995. 

O fato de ela ser competente não deveria em momento algum entrar em discussão. Se ela fosse absolutamente incompetente, ainda assim o passageiro estaria errado, pois ele não questionou a competência dela (sobre a qual ele não tinha informação nenhuma). Ele questionou o fato, imutável, dela ser mulher.


Uma bela discussão deste tipo de raciocínio está no filme "Little Woman", de 1994. No diálogo, um homem que defende o voto das mulheres diz que elas deveriam votar porque são boas, e escolherão bons candidatos. A personagem Jo March responde que: "I find it poor logic to say that because women are good, women should vote. Men do not vote because they are good; they vote because they are male, and women should vote, not because we are angels and men are animals, but because we are human beings and citizens of this country."
(É uma lógica pobre dizer que mulheres devem votar porque são boas. Homens não votam porque são bons; eles votam porque são homens, e mulheres devem votar, não porque são anjos e homens são animais, mas porque somos seres humanos e cidadãos deste país).


Do outro lado da moeda, temos que também fazer nosso mea culpa: quantas de nós confiam implicitamente em homens para: tomar conta das crianças, fazer compra de supermercado, lembrar de marcar dentista, escolher um apartamento, ser empregado doméstico, ou professor de escola infantil?

Como aprendi com um grande escritor, o Seldo, só teremos uma situação de igualdade em áreas segregadas, da engenharia à enfermagem, da pedagogia à computação, no dia que aprendermos a confiar (ou não) na capacidade do outro independente de gênero.

Até lá, muito troglodita vai poder pensar que pode estar meio certo.

A Última Guerra

 O último mês viu o nascimento do ChatGPT . Pela primeira vez, um programa de computador é capaz de responder à perguntas como um ser humano...