Papi e eu, em 1814... |
Carinhoso, e esclarecedor, publico aqui com a permissão dele.
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Carta para mim mesmo aos 61 anos
Você já devia saber o que é ser um homem.
Parece óbvio, mas não é, porque é muito mais complicado do que parecia e a vida corrida nos leva a minimizar as dificuldades e achar que o ideal de homem pode ser alcançado facilmente. Não, não pode.
Sim, você pode ter feito Medicina, mas você não conseguiu trabalhar como imaginava porque a estrutura social em que nos encontramos é injusta e gera uma enorme insatisfação profissional (pelo menos na medicina) em quem foi contaminado pelo humanismo socialista. Você pode ter pedido demissão do hospital, saído da faculdade de medicina, jurado que nunca mais colocaria a mão num paciente, mas fez tudo isso com um enorme complexo de culpa porque sentia que havia jogado fora uma oportunidade de ouro que seus pais lhe ofereceram, ou porque poderia fazer tanto suposto bem aos mais pobres continuando a ser médico, ou podia ter ganhado um pouco mais de dinheiro e evitado as inúmeras brigas domésticas por dificuldades em lidar com o dinheiro como um “verdadeiro” homem deveria fazer.
E, sim, você pode ter estudado muito, feito seu Doutorado, mas quando foi pedir financiamento para sua pesquisa descobriu que existem espertos produzindo 50 artigos científicos por ano e deles será o reino dos céus e das verbas. Você vai ficar revoltado, denunciar, mas será tratado como um lastimável perdedor que não sabe o seu devido lugar.
Sim, você pode ter trabalhado fora, mas teve que escolher entre deixar suas três filhas com uma babá sem cultura, sem preparo psicológico e com escolhas religiosas diferentes das suas OU aceitar que sua esposa sacrificasse a vida profissional DELA para ficar com elas e dar às crianças toda a atenção que você não podia dar. E seu emprego nem pagava tão bem assim...
Além disto, tudo, mesmo casado com uma mulher que acreditava na igualdade de oportunidades, não era submissa, assumia as responsabilidades da casa com coragem e alegria e te amava muito, você se sentia responsável por todas as necessidades financeiras domésticas. Você se culpava a cada hora do dia que estava trabalhando em pesquisa ou quadrinhos e não estava ganhando o suficiente para que cada uma de suas filhas tivesse tudo o que querem.
Você não fez grandes coisas e nem foi o melhor do seu campo de trabalho (talvez o melhor fisiologista do exercício do bairro Itapoã ou o melhor cartunista de Jesuânia, até agora, pelo menos) porque há uma grande parte da sua vida que depende do acaso e a gente controla um mínimo das coisas, apesar de ter (ou precisar ter) a sensação de que controla o nosso destino. Há sempre algo imprevisto em seu caminho, algo para resolver, sejam a descarga que não funciona ou uma coronária entupida, a compra do supermercado ou o processo do Carrefour, a vacina da sua filha ou a gripe de sua neta, as contas a pagar no banco ou a herança de seu pai.
E você conseguiu trabalhar fora, sim. Ganhando (quase sempre) um terço do que a maioria dos seus colegas de medicina ganhava, mesmo quando eles trabalhavam o mesmo tanto de horas que você. E sendo menosprezado (ou odiado) pelos seus alunos de Educação Física cada vez que o semestre começava, porque você era médico e não um deles. Você teve que convencê-los a cada semestre que você sabia um pouco do que estava falando (embora você tenha sido um tanto prepotente, é verdade).
Sei que você está pensando que pode recuperar o tempo perdido. Será possível? Seu tempo de vida vai acabar em 13 anos (50% de chance) e seria preciso recomeçar imediatamente!
Então, vou dizer-lhe, rapidamente, o que você, aos 61 anos, deveria ter feito de diferente, se pudesse:
1) Desde o dia que sua primeira filha nasceu, você deveria ter dedicado a ela mais tempo, mais paciência, mais carinho, mais tolerância e menos cobranças, esperando que com isso, um dia, ela não tivesse uma crise de depressão e quisesse morrer.
2) Você deveria tentar convencê-la de que ser homem ou mulher não é culpa de ninguém e nem uma escolha, apesar do Laerte discordar disso.
3) Você deveria ter mostrado a ela que a sociedade que nós construímos é injusta com as mulheres, mas também o é de formas diferentes com todos os demais componentes (inclusive as companheiras de Scrapbook, não é mesmo?). Lembrando a Ana Karenina do Tolstoi, as pessoas são felizes de formas semelhantes, mas são infelizes cada uma à sua maneira.
4) Você deveria ter insistido com ela que não existem pessoas que são ALGUÉM na vida e outras que são alguém. As pessoas se sentem melhores ou piores do que as outras, mas ninguém é de fato melhor ou pior: somos todos humanos (demasiadamente, diria o Nietzsche), como o Riobaldo naquela carta.
5) Você deveria ter dito para ela dizer à filha dela, que gostaria de ser astronauta, veterinária, médica e pizzaiolla, que ela pode (e deve) desejar livremente ser tudo, pois o que ela será de fato ninguém sabe ao certo. As probabilidades falam de chances e nunca do que acontecerá na vida real, não é mesmo Gisele Binxem, Dilma Russef, Virgínia Woolf, Margareth Tatcher e Frida Kalo?
Mas talvez, toda esta conversa se resuma em dizer a você que exercer os papéis de homem ou mulher nunca será o suficiente para trazer a alegria de viver. É preciso amar aquilo que se é.
Luiz Oswaldo
Marido da Thalma, Pai da Ana, da Maria Helena e da Luíza e avô da Alice, do Francisco, da Rosa e do Antônio.
Luiz Oswaldo, avô da Rosa |
Que legal! Amei as cartas da Ana e amei a resposta do pai da Ana. A beleza de ambas está no fato de que, em cada uma delas, é possível sentir a emoção e o aprendizado do momento de vida em cada um se encontra. O diálogo entre elas mostra a riqueza das relações humanas, em especial entre pai e filha, que se amam e ao compartilhar seus sentimentos, buscam uma vida mais autêntica, prazerosa e feliz! Abraços aos dois!
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