24 de julho de 2013

Situações Limite

Seguindo na publicação dos meus contos (os anteriores estão aqui, aqui e aqui), o conto abaixo se chama "Situações Limite". É mais longo que os anteriores, e eu acho que é mais intenso.



Capítulo 5 - Situações Limite


Eram duas horas da manhã quando o telefone tocou.

Adiei o gesto de atendê-lo até o ponto em que minha paciência teria se esgotado e eu teria desistido. Não desistiram.




Do outro lado, uma voz estranha despejava palavras incompreensíveis. Quis xingar o imbecil que me passava trote a esta hora da madrugada, mas me assustei ao olhar para a cabeceira. A capa do livro que eu adormecera lendo também ficou incompreensível. Me passou pela cabeça que eu não estava entendendo a única língua que sabia.


Porém, não me desesperei. Estou sonhando, por certo. Desliguei o telefone, sentindo um imenso alívio por não ter que me irritar com o idiota do outro lado, virei para o lado e concentrei-me em sair do sonho.


Às sete, o despertador tocou. De olhos arregalados, Dan me olhava, do outro lado do quarto. Abriu a boca, fez cara de choro, e eu fiz sinal para que chegasse perto. Sentou-se entre minhas pernas e sorriu. Eu pensei em como deve ser bom ter só 3 anos e não sonhar com trotes telefônicos. Fechei os olhos, antecipando o café que teria que preparar para meu amado e para sempre fiel esposo que continuava dormindo, apesar dele ter jurado que, nas noites em que eu cuidava do Dan, ele faria o café de manhã.


Levantei. Fui até a cozinha, Dan me seguia, de novo meio choroso. Peguei-o no colo e perguntei: "


"Que foi, filho?". Quer dizer, eu tentei perguntar: "Que foi, filho?". Saíram de minha boca sons estranhos, sibilos, e um gargarejo. Pigarreei. Dan perdeu a cara de choro. Abri a boca e soltei um "Dan". Este saiu certo


Pensei, meu nome. E um perfeito "Marta" saiu da minha boca. "Marta Lucas Lage". De novo sem problemas. Tentei café. "Sclug". Filho. "Tchuag". Socorro. "Mindaua".


Dan olhava espantado, talvez divertido, para a minha cara. Larguei-o no chão, pus as mãos em volta do pescoço. Olhei para o jornal em cima do sofá, e percebi  que não estava sonhando às duas da manhã. Números, figuras, tudo em ordem. Mas as palavras eram letras ligadas umas às outras, sem o menor sentido. Algumas pareciam apenas uma sucessão de consoantes impronunciáveis. Mas, estranho, eu percebia (e era capaz de falar) qualquer nome próprio. Só por isto percebi que ainda sabia ler. Inevitavelmente, pensei no telefonema... 


Fui até o quarto e sacudi meu marido. Ele acordou assustado. Olhou para mim e esperou que eu dissesse alguma coisa. Rapidamente, contei tudo o que estava acontecendo.


- OK, Marta, OK. Furei de novo. Não precisa brigar comigo...


"Mas você não entende, eu não estou falando... eu não consigo ler... nem escrever, só entendo o que você fala...


- Para com a brincadeira... eu já entendi. Eu escuto o que você fala... eu entendo os seus sentimentos... eu não falo as coisas por falar. Eu só não ouvi o despertador tocar.


Toca a campainha. É a Lourdes. Ela vai me entender!

- Lourdinha!
- Bom dia Dona Marta... a Sra. precisa ver a Avenida! Tá uma loucura por causa da feira... por falar nisto a Sra. vai querer que eu olhe o Dan hoje?


Fiz que sim com a cabeça. Segurei-a pelos braços, com olhos arregalados.


- Credo, dona Marta! Que que houve com a Sra.?
- Splung drong misssc nuvarrl drangd!!
- Para com isto, dona Marta! A Sra. tá me assustando!


Tudo bem. Aquilo não estava dando certo. Como explicar? Mímica! Pus as mãos em volta do pescoço e fiz cara de dor. Apontei para o jornal e fiz cara e gesto de quem não entendia.


- Ahhhh... porque a Sra. não falou antes? Tá com dor de garganta? Pode deixar que eu preparo o chá de erva cidreira que a Sra. adora... e quer que eu leve o jornal pro seu Alberto. Não é isto?


Fiz que sim com a cabeça. Não ia funcionar.


Alberto chega na cozinha, com o Dan no colo. Um me olha de lado, sem me encarar. O outro pede meu colo na esperança de me ouvir falando esquisito de novo. Abraço o Dan. Ele não vai me entender, mas isto não faz muita diferença pra ele. Olho Alberto com ar de sofrimento. Ele vai achar que eu ainda estou brava com ele. Droga!


- Marta...

Abano a cabeça. É melhor deixar pra lá...
 

- ... será possível que vamos brigar por esta bobagem?
Faço que sim com a cabeça. Ele não discute. Pega a pasta e sai. Fico olhando o Dan. Ele ri e tenta pegar os meus óculos. Lourdes chega com o chá, que eu bebo sem convicção. Pego as chaves do carro e mostro pra Lourdes, e aponto para o Dan.


- Tudo bem, Sra., eu busco ele na escolinha... melhoras.


Entro no carro pensando o que fazer. Deixo o Dan e vou pro escritório. Paro na porta. Acho que não vai adiantar muito uma secretária muda, então volto para o carro. Mas talvez alguém me entenda e me ajude. Saio do carro de novo. Mas a confusão que eu posso provocar pode me custar o emprego. O Dr. Silas já não anda muito feliz desde que eu saí de férias e volta e meia chego tarde por causa do Dan. Abro a porta do carro. Mas eu vou fazer o que? Fico lá, quase 15 minutos abrindo e fechando a porta, até que um guarda se aproxima.


- Posso ajudá-la minha Sra.?


Não posso nem pensar em dizer "Não, muito obrigada". Balanço negativamente a cabeça, tranco o carro e vou andando para o prédio com um sorriso nos lábios. Ele me olha de lado, fazendo cara feia.


- Bom dia, dona Marta, tudo bem?
- Hum, hum, João.


O porteiro estranha a intimidade, sentindo falta do "Tudo bem. E o sr.?" de sempre. Mas quanto menos gente desconfiar, melhor. Entro no elevador e Cecília me sorri. Ela não vai me perguntar qual andar, pelo menos. Mas estranha eu não agradecer, quando ela segura a porta para que eu passe.


Vou até a sala de Marília. Entro sem bater, e aponto para a garganta. Pego ela no telefone, desligando, mas eu ouço a última frase: "Mas a Marta não pode saber nunca, Alberto! Tchau, querido."


Meu Deus, o que eu faço! Minha melhor amiga tendo um caso com o meu marido e eu neste estado!! Fico ali, com cara de idiota, as mãos no pescoço (isto está virando um hábito) e penso o que ele viu nela... e fui eu que apresentei os dois. Ela se vira e me vê. Me olha meio assustada, vem em minha direção, sorrindo, querendo fingir que não sabe que eu ouvi...


- Oi, Marta, tudo bem? Você está aqui há muito tempo?


Falsa!!! Fingida!!! Idiota!!!! Viro as costas e saio da sala. Ela vem atrás.

- Você queria falar comigo? Marta, espera! Não é o que você está pensando!

Esta é boa. Queria poder rir na cara dela. Mandar ela e o Alberto engolirem um ao outro e desaparecerem, mas sei que não vou conseguir. Então vou para a sala do Dr. Sílvio. Bato na porta e entro, deixando Marília plantada no corredor.


- Isto são horas, dona Marta?

Acalme-se, concentre-se, explique-se. A cena patética das mãos na garganta, a cara de falta de compreensão, um olhar suplicante pedindo ajuda. Ele me olha intrigado.


- Você está bem?
 

Faço não com a cabeça, segurando o sorriso de felicidade por alguém estar me entendendo finalmente. Aponto para o jornal, finjo ler, nova cara de falta de compreensão. Ele faz cara de preocupado.


- Garganta?... Visão?... não estou compreendendo...


Junto coragem e falo a frase mais boba que me vem ã cabeça: "Batatinha quando nasce"...


- "Dispug meuhe nigggri..."
- Dona Marta! Isto é e algum tipo de brincadeira?
 

Faço não com a cabeça, e começo a chorar...
 

- Calma, está tudo bem... não precisa chorar. A Sra. está com alguma dificuldade muito séria, não é?


Sim!


- Está precisando de novas férias, não é?


Não! Ah, meu Deus! Será possível que não tem uma pessoa no mundo que ache que eu estou falando a verdade? Aponto a garganta, o jornal, começo a chorar de novo, da minha boca saem sons esquisitos quando eu peço pelamordedeus para alguém me ajudar e quando dou por mim já estou na rua de novo, abrindo a porta do carro e indo para o hospital.


Decido fingir que estou muda, até me levarem para algum tipo de fonoaudiólogo, que tente me entender de verdade.


Me atende uma moça com menos idade que eu gostaria, com uma cor de cabelo duvidosa. Pede que eu preencha a ficha, e me entrega um papel que podia ser a declaração da Independência que eu não perceberia a diferença. Estico para ela a minha carteira de motorista e a de identidade, o CPF e a carteirinha do Convênio, que eu reconheço pelo formato e pela cor. Ela faz uma cara impaciente e preenche a ficha, enquanto eu olho triste as placas que me levariam à pessoa certa se eu soubesse lê-las.


No crachá da enfermeira tem um monte de palavras estranhas e Neide S. J. Wallace. Aponto para as placas, e faço cara de quem não entende. Coincidência ou não, ela volta para uma área já preenchida da ficha e rabisca o que escreveu, marcando x em vários quadrados antes deixados em branco. Agora, além de louca, sou analfabeta e muda.


- VOCÊ PODE ME OUVIR??


Faço que sim com a cabeça, embora a voz dela ainda ecoe na minha cabeça... pelo menos ainda não sou surda.


- PORQUE VOCÊ ESTÁ AQUI?

Faço sinal de que ela pode falar mais baixo, que eu ouço!



- Desculpe, mas este é o procedimento normal... então, qual o problema?


Me pergunto se o procedimento normal realmente determina que você deve berrar perguntas orais à mudos analfabetos, mas aponto para a garganta.


- Dor de garganta?


Não. Como explicar? Solto uns grunhidos, algo como "sua idiota" na língua estranha que aprendi a falar contra a minha vontade.


- Filhinha, eu não estou por sua conta. Qual o problema?


Faço gestos de quem está falando, conversando animadamente, e solto novos grunhidos "não consigo me expressar, você não tá vendo, ameba vestida de branco?".


- Olha, aqui é só tratamento de emergência. Se você está procurando alguém para te ajudar a recuperar a fala tem que ir numa Clínica Especializada em Fonoaudiologia.


Serve! Sorrio para a menina, que já parece mais contente porque vai se livrar de mim, e atender o senhor que segura o braço do neto como se ele estivesse morrendo, assoprando o arranhão. Ela escreve um endereço em um papel, e me entrega. Faço uma cara de desespero, e ela lê para mim. "rua tal, numero este, quarto andar". Faço um o.k. com o polegar e a beijo no rosto. Ela sorri sem jeito com o gesto e olha para o velho. Em 3 minutos estou a caminho da salvação.


Estou tão contente com o fato de que, pela primeira vez hoje, me sinto evoluindo no problema, que passo um sinal vermelho sem perceber. Ouço a sirene atrás de mim, e encosto o carro, prevendo o desastre a seguir.


Em seguida estou na delegacia, sendo autuada por desacato à autoridade. Desacato este gerado pelo fato que me recusei a falar com o guarda. Mostrei meus documentos, fiz tudo o que ele me mandou, respondi sim e não com a cabeça, mas ele fazia questão que eu respondesse, e, uma vez que eu não tinha "deficiente" na minha carteira de motorista, eu tinha que falar.


O delegado, já visivelmente irritado com minha mudez voluntária disse que eu poderia telefonar para alguém se eu quisesse. Grande. Como se fosse resolver. Eu podia ligar para o Alberto, mas ainda estava com raiva. Marília idem. Lourdes não ia resolver nada. Meu advogado não me reconheceria. Dan ainda não tem idade para convencer estes idiotas que a mãe dele não é louca.


Engulo o choro, pego a caneta e rabisco o número e o nome de Alberto em um papel. Estendo para o delegado, com olhos de súplica. Faço por mímica um "meu" e aponto a aliança. Ele entende.


- Ô, João, liga pro marido da dondoca muda aqui e manda ele vir, senão ponho ela em cana.


Mais 20 minutos olhando a parede e o delegado, que agora parece se divertir com a história. Ele me conta dois casos de mudos que não eram mudos coisa nenhuma, mas que se fizeram de mudos para não se incriminarem, mas que no final ele descobriu tudo e os dois pegaram mais de 10 anos cada.


E eu me perguntava se não seria engraçado se ele descobrisse que eu sou só uma dona de casa idiota, que descobriu que o marido idiota está dormindo com a melhor amiga idiota, que tem uma empregada idiota que não sabe fazer canja de galinha nem gelatina, que tem um chefe idiota que é a cara do Osmar Prado, e que às terças e quintas vai na natação desde que o primeiro filho nasceu e a primeira mecha de cabelos brancos incomodou. Acho que isto dava mais de 20 anos...


Alberto chega de táxi, entra na delegacia e me olha preocupado. Me abraça com carinho, que eu recuso solenemente. Os guardas acham que a mudez é por causa dele e riem. Eu ergo a cabeça, jogo uma mecha solta para trás, e aponto para o delegado, olhando para meu amado marido traidor filho da puta.


- O Sr. me desculpe, mas minha mulher está passando por uma fase difícil, não sei se o Sr. compreende...


Não, ele não compreende, a mulher dele nunca acordou sem saber falar e pediu a ajuda dele e ele não entendeu, achou que ela estava louca e saiu correndo para ligar para uma tal Marília, esquecendo que tem um Dan e uma Lourdes em casa, esperando ele para jantar, ver a porcaria do jornal que eu finjo que gosto, e ir fazer sexo com diafragma porque ainda não está na hora de ter outro filho, se é que algum dia vai existir esta hora.


- Mas porque ela não fala?
- Ah, isto é um problema vocal. Ela teve uma inflamação seríssima na garganta, e desde então não pode mais falar direito...


Ele fala hesitante, com medo de estar contrariando algo que eu tenha dito. Sorrio amarelo para ele, que ganha convicção e, talvez, alguma credibilidade com o delegado. Nisto entram na delegacia 2 policiais segurando um indivíduo com cara de assustado. Por um momento acho que eu posso não ser a única, talvez tenha mais gente perdida por aí como eu!


- Calma aí, chefia, o carro era de um amigo meu...


Não, este ainda sabe falar, embora talvez vá precisar de ajuda para dizer o que este pessoal quer ouvir... O delegado parece satisfeito com uma nova vítima e resolve nos dispensar, sem esquecer do imperdível:


- Desta vez passa, mas eu estou de olho em vocês...


Mando-o à merda mentalmente e mostro o endereço da clínica para o Alberto, que, a estas alturas, já quer me matar. Tudo bem, é recíproco.


Ele entra no carro e solta os cachorros.


- Quê isto agora, Marta? Enlouqueceu? Ou melhor, piorou? Tá achando que é brincadeira? Que por causa de uma noite acordada você pode mandar meu emprego pro espaço? Sabe o que eu tive que fazer prá vir aqui? Gente, eu deixei o Artur plantado lá no escritório! Ele pode ter fechado a droga do negócio com o vendedor novo! Mas você não está nem aí, né? Você tá se lixando se eu passei 2 semanas convencendo o idiota que ele queria comprar as três ordenhadeiras, e agora o panaca do Getúlio vai levar a comissão!!! E tudo porque a senhorita achou que é bonito ficar sem falar!!!


Eu espero ele terminar de socar o volante para olhar para ele. Olho ele nos olhos, como não fazia desde o dia que o Dan nasceu. Sei que ele vai entender agora. Que, como quando a gente era namorados, ele vai saber o que estou pensando e vai me levar para a clínica.


- Não adianta pedir desculpas agora. A gente resolve isto em casa!


Gente, como a Marília aguenta ele????


No primeiro sinal fechado, abro a porta e desço do carro. Ele olha assustado enquanto dou sinal para um táxi, entrego a ele o endereço da clínica e já estamos dois quarteirões na frente quando Alberto arranca com o carro de novo.


Pago o motorista sorrindo e subo os degraus de dois em dois. Estou tocando a campainha da sala quando o elevador se abre atrás de mim e Alberto desce dele. Vai me xingar, mas vê a placa na porta (que eu não entendo mas adivinho o que está escrito) e me olha, pela primeira vez no dia, como quem quer me ouvir. Apenas sorrio e olho para a garota na minha frente, que abre a porta com um misto de formalidade e carinho. Ela parece uma destas atrizes de filme antigo, com nariz empinado e grandes cílios que parecem postiços.


Vou começar a mímica de novo, mas Alberto se adianta.


- Minha mulher perdeu a capacidade de falar. Alguém poderia nos ajudar?


Se ele não estivesse dormindo com a Marília acho que o beijaria como nunca o beijei antes. Mas como está, me limitei a olhá-lo como quem diz: "Agora você acredita, né, seu idiota?".


Entramos em uma das salas. Toda branca, até os móveis. De colorido só o gravador em cima da mesa, que era cinza e algumas fantasias penduradas num cabide, de palhaço e de bailarina. Me perguntei o que elas estariam fazendo ali.


Entra na sala Dr. Márcio, que me olha e pergunta:


 - Você me compreende?


Faço que sim com a cabeça... e, de repente, fico muito assustada. Se eu entendia o Dr., meu marido, a Lourdes, o delegado, Marília, Dr. Sílvio, Cecília, seu João, as pessoas falando no rádio e na rua, porque eu não tinha entendido a pessoa falando no telefone?


- Desde quando ela está sem falar?


Faço 2 com os dedos.


- Dois dias?


- Acho que é duas da manhã - diz Alberto, timidamente.


Faço que sim.


- Algo especial aconteceu neste momento?


Imitei o gesto de atender o telefone.


- O telefone tocou?


Sim.


- Era alguém conhecido?


Não sei.


- Você entendeu o que ele ou ela te diziam?


Não.


Para o Alberto:


- Eu sei que vocês vão achar que isto não tem nada a ver com o caso, mas vocês dois estão bem? Digo, como marido e mulher. E no serviço? Tem filhos?


- Eu acho que está tudo bem... ela teve uma discussão com o chefe recentemente porque saiu de férias quando ele estava precisando dela, mas acho que isto já foi resolvido não é, querida?


Não.


- Dona... Marta, este é o seu nome?


Sim.


- Você e seu marido estão bem?


Não.


- Você e seu chefe estão bem?


Não.


- Tem a ver com este seu problema?


Depende. Se eu responder que não é mentira, porque meu problema com meu chefe estaria o.k. se eu não estivesse assim, mas eu só estou assim com meu marido por causa desta mudez que me fez entrar na sala da Marília sem bater. Balancei a mão e fiz cara de não sei.


- O Sr. pode sair, por favor?


- Está bem. Se precisar de mim, querida, estarei aqui do lado.


Vejo Alberto saindo e quase fico com pena dele. Fico pensando se Marília já ligou para ele avisando que eu sei de tudo. Provavelmente não.


 - Dona Marta, o seu marido a trai?


Sim.


- Olha, eu sei que é muito comum não querer falar com ele nesta situação.


A Sra. descobriu hoje? Sim.


- O seu problema não é fonoaudiológico, é psicológico. Eu não posso ajudá-la, infelizmente, mas gostaria que você procurasse este amigo meu, o nome dele é André. A Sra. gostaria de vê-lo?


Mas eu estou falando!!! Só não estou conseguindo entender letras e falar algo que os outros compreendam!!!


- Misculg niblop rrreusde riew eriawa!!!


- Entendo... a escolha é sua, minha senhora. Mas a Sra. gostaria que eu examinasse sua garganta?


Sim.


Passo meia hora de boca aberta. Ele olha tudo. Eu não espero muita coisa, já que, se fosse garganta, eu seria capaz de ler e entender. Por fim ele me diz que eu não poderia estar mais saudável. Junto com o cartão dele me passa o do tal André.


- ... afinal, se a senhora mudar de ideia...


Saio da sala desanimada, e contagio Alberto. Voltamos para casa calados, olhando para a frente. A esta hora Dan já está almoçando e Lourdes se pergunta porque ainda não chegamos...


Já tem uma semana que não saio de casa. Desisti de tentar me curar, e a Lourdes já está entendendo um pouco do que eu falo. Já estou reaprendendo a ler, fazendo treinos com livros infantis. Alberto quase não fala comigo. Sai de casa cedo e volta tarde, sempre com coisas para fazer. Não janta e nem assiste mais o jornal. Dan fez 4 anos ontem. Eu farei 32 daqui a 3 dias.


Me demiti do emprego com uma carta escrita pelo Alberto, que ele leu para mim: "Peço demissão por motivos de saúde, que, infelizmente, estão sem perspectiva de solução a curto prazo. Agradeço o apoio e profissionalismo de todos, desejando felicidade às famílias e prosperidade à companhia. Meu marido irá até a seção de Pessoal para acertar os detalhes técnicos. Atenciosamente, Marta Lucas Lage".


Horrorosa, mas o que eu podia fazer? Esperar uns 6 meses sem aparecer até ser capaz de escrever sozinha? Pelo menos ele não fez nenhum comentário pessoal à Marília.


Esta, por sinal, resolveu me visitar outro dia. Eu não ia abaixar a cabeça, e não a recebi. Quando ela estava indo embora, Alberto disse que eles precisavam conversar e foi com ela. Era a véspera do meu aniversário. Chorei no colo da Lourdes durante duas horas e adormeci.


Acordei com a esperança de que tudo ia acabar ali. Demorei a abrir os olhos, imaginando que seria o máximo simplesmente esquecer que tudo tinha acontecido. Estiquei o braço para tocar Alberto e senti a falta dele. Então era isto. Acabava-se o casamento hoje. Abri os olhos e vi que as janelas estavam abertas. Ele sempre fechava as janelas à noite. Dan estava na porta do quarto, espantando por ter dormido até tão tarde. De dentro da casa eu podia ouvir a Lourdes batendo pratos contra colheres e facas para por a mesa do café...


Estiquei os braços e pensei como explicar pro Dan na minha língua que a mamãe dormiu demais e que hoje não tinha escolinha... mas quis acreditar por mais alguns minutos que eu falaria normalmente. Só o abracei.


Levantei da cama, troquei de roupa, enquanto Dan descobria o gosto do cinto do meu roupão. Fiquei alguns minutos olhando pra ele, pensando como será quando ele não tiver mais o pai por perto... será que vai ficar complexado? Se bem que metade da classe dele já é de filhos de divorciados...


Peguei meu filhinho no colo e já o achei pesado... nossa, são os seus 4 anos que estão mais gordos ou os meus 32 que estão mais fracos, gracinha?


Fomos até a cozinha brincando, e, surpresa, lá estão Alberto e Marília me esperando para o café. Quase caio.


Ponho Dan no chão, e me odeio. Sento na mesa fingindo naturalidade. Olho para eles e para o bolo em cima da mesa. Tem algo escrito nele, e os dois estão sem graça porque sabem que eu não entendo.


- Está escrito "Feliz Aniversário! Para a Melhor Amiga e Esposa do Mundo".


Ele sorri e pega na mão dela. O que eu estou esperando para tacar o bolo na cara dos dois, pegar uma faca e me matar? Eles se levantam e me abraçam. Isto não está acontecendo...


- Nós sabemos que você está passando por uma fase muito difícil, por isto decidimos suspender a festa que estávamos combinando... ia vir todo mundo, até o casal do 202, que você sempre diz que adora mas que não tem tempo para chamá-los aqui em casa, querida. Era isto que eu tanto combinava com a Marília... acho que vai ter que ficar para o ano que vem, né?


Ele me beija, enquanto ela pega o Dan no colo.


- Lembra da tia Marília, Dan?


O telefone toca. A campainha também. Enquanto eu abro a porta para a Lourdinha entrar, Alberto vai atender o telefone. Começo a acreditar que minha vida vai voltar ao normal, e que eu estava sendo uma tola este tempo todo... abro a boca e resolvo falar pela primeira vez no dia. "Eu estou feliz".


- "Nigs tut nion"...


- Ah, dona Marta, este a senhora já me ensinou. É bom dia, né?


Neste momento, Alberto volta da sala com as mãos em volta da garganta, apavorado.

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