20 de julho de 2013

Sempre é cedo demais - Capítulos 2 e 3

Estou postando um livro de contos que escrevi. O começo está aqui. Os dois textos abaixo foram escritos no ano em que morei em Londres. Morar ao lado de um cemitério (literalmente, dava para ver as lápides da janela do meu quarto) e ficar sem sol por seis meses afetaram minha alegria.



Capítulo 2: A Caminho do Cemitério
o caminho

Quem nunca teve que atravessar um cemitério diariamente talvez não entenda porque eu não olho para os lados quando faço o percurso.


Nos primeiros dias, você repara nas lápides, com uma curiosidade mórbida. Lê alguns nomes, acha uma bonita, a outra simples demais. Fica imaginando quem escolheu a lápide. Quem pôs as flores que estão murchando, quem cuida da restauração das que quebram.



Depois, você começa a achar tudo meio estranho. O lugar está morto, como as pessoas enterradas alí. Nada se mexe. Nada é diferente. Não é como passar em frente à lojas, parques. Nestes lugares, tem sempre uma novidade, alguém rindo, uma coisa que você não notou. No cemitério, até o tempo parece parar. Só você muda, passando lá todo dia. Você está envelhecendo um dia por dia. E o cemitério não.


Por fim, você não quer mais olhar. Só sente uma tristeza imensa, uma pena. Uma das lápides tem escrito: “Adormecido”, e você pensa no pesadelo de ser enterrada viva. Não é agrada ́vel. Você fica feliz de sair do caminho que passa dentro do cemitério, mas sabe que amanhã você estará lá de novo.


Até quando, você se pergunta, vou atravessar o cemitério? E a resposta é assustadora.

Capítulo 3: A Grande Cidade 


Eu andava pela grande cidade, que abarcava céu e terra com suas montanhas de concreto. Pisava no asfalto e o cheiro de esgoto e suor parecia vir do próprio ar.

Parecia-me que qualquer coisa em mim havia se misturado aos becos por onde já andara. Em cada espelho das vitrines, via-me distante. E eram tantos os espelhos, e eram tantas as luzes, que a iluminação da grande cidade não permitia que enxergasse direito.

Procurava em cada frase um sentido oblíquo e semântico, e interpretava olhares e gestos. A violência e a dor estampada em cada rosto, o cansaço e a tristeza em cada passo. Parecia-me ter perdido o início do espetáculo e o sentido do roteiro. Os atores da grande cidade são todos coadjuvantes.

Falavam-me numa língua estranha, que, por vezes, parecia entender. Captava apenas sons desconexos, que me lembravam velhas canções esquecidas e discursos repetitivos. Era impossível achar a poesia, a prosa e o conto na louca sinfonia de gritos e buzinas. Antes, parecia-me que gritavam a plenos pulmões a intolerância, a burrice, o engodo. Meus sorrisos deslocados eram recebidos com olhares de pena, e parecia-me que zombavam de mim. Perdia a esperança e compreendia que nada me importava, exceto a falta de tempo e a comida engolida no restaurante a quilo.

Atrás das pessoas nos pontos de ônibus, cartazes traziam a promessa da grande cidade de Marlboro, da Coca-Cola, do Jeans Levi’s. A grande cidade consome o sonho, compra o desejo e recebe o lotação abarrotado das 6 horas. 
 
Acenavam para mim amigos e amores, e espantavam-se que eu não os reconhecesse, perdidos na massa que caminhava sem rumo pelos corredores de metal e cimento que surgiam em todo canto. Novos cantos aumentam a grande cidade a cada dia, parecendo que vai crescer para sempre, e para sempre não cabendo. Espanto-me em lembrar de várias versões de uma mesma avenida, em ver os trabalhadores enlouquecidos que martelam as paredes para derrubar e erguer, cavar e tapar, levantar e abaixar, trocar tudo do lugar. Na grande cidade, ficar parado é morrer.

E morrer é fácil, corriqueiro, estatístico. Milhares todos os dias, que deixam seus lugares vazios por alguns segundos. Uma bênção, um caixão, e a registradora apita que pode nascer mais um. Ou mais muitos. E a grande cidade nos avisa que não temos mais espaço para tristeza e saudade, sinto muito.

Na grande cidade os gestos e frases são reflexos das fomes e sedes do corpo. Os olhos fartam-se com a oferta de todos os doces, bebidas e salgados do mundo, ao alcance do cartão de crédito. Na grande cidade a fome é coletiva, a comida quase nunca.

Confundiam-se horas e minutos, embora todos fossem tarde demais. Via tantos correndo, alguns esperando, todos na fila infindável para fazer parte da vida. Na grande cidade o urgente jamais deixa tempo para o importante. Seguia em frente, na promessa de um dia parar. Parar de correr, parar de caminhar sem rumo, parar de lutar contra a distância e o tempo que se espalham e encolhem pela grande cidade. Mudaram-se os limites, as fronteiras, mas a cada manhã vou levantar e caminhar outra vez, no mesmo lugar. 

Sigo só, e só continuarei, enquanto procuro razões para ficar.

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