18 de novembro de 2022

Mas isto não dói.

 Escutei uma piada esta semana, sobre millenials e a relação deles com ansiedade:

Milenial fala: - Eu tenho um transtorno sério de ansiedade.
A outra pessoa responde: - Nossa, sinto muito ouvir isso. Você vai se tratar, fazer algo a respeito?
Milenial responde: - Não. Estou te contando para que você se adapte à minha situação.

Eu sou GenX, nascida em 1976. Minha irmã mais nova, nascida em 1980 já está na tansição. Eu tenho uma grande admiração pelos millenials, e essa é mais uma faceta deles que difere brutalmente da minha geração: a relação com as próprias doenças, especialmente as relacionadas à saúde mental. Mas vamos começar pela dor física.

O título deste post se refere às muitas vezes que eu, geralmente em uma consulta médica, ao relatar dor, ouvi: "Mas isso não dói." Variações desta frase foram ditas para mim quando:

- Eu estava com cólica mas já tinha tomado todos os remédios possíveis ("Mas você não devia estar sentindo dor ainda.")

- Na recuperação das minhas duas cesáreas ("Mas cesárea você nem sente.")

- No dia seguinte de uma aula experimental de Pilates ("Mas isso não é dor, é o corpo acostumando")

- Um ano depois das minhas cesáreas ("Mas a área já está totalmente cicatrizada")

- Ao sentir dor no corpo ao acordar por causa de fibromialgia ("Mas você deve ter dormido de mal jeito, porque seu corpo não dói sem motivo")

- Ao reclamar de dor nos ombros e nas costas ao final do dia por causa do peso dos meus seios ("É só arrumar a postura das suas costas que pára de doer. Alça de soutien não dói.")

- Ao investigar um caroço no meu seio porque doía quando alguém me abraçava ("Mas isso é só um cisto, isso não dói.")

- Ao mancar por semanas depois de machucar o joelho caindo da bicicleta ("Mas já era para não estar doendo mais")

- Ao tentar abrir latas, garrafas e até mesmo a torneira do chuveiro ("Mas já estava quase aberta, não doi a mão abrir isso não.")

- Quando eu tive um cisto ovariano (não rompido), mas dobrava de dor no chão do hospital ("Mas se não rompeu, não devia estar doendo.")

E qual foi a minha reação? Achei que eu que estava errada. Achei que o que eu acreditava que era dor devia ser normal. Eu normatizei a dor na minha vida, convivi com ela por muitos, muitos, muitos anos. E isso afetou minha vida de maneiras que eu acho que nem consigo medir. Porque não só eu sentia dor, como eu achava que não devia estar sentindo.

Somente depois de muita terapia, CBC e uma vida menos ansiosa, e, recentemente, tentar comer menos glúten (assunto para um post futuro) que as dores em geral começaram a diminuir. E essa nuvem de irritação constante e ansiedade se dissipou um pouco. 

As pessoas que me conhecem me acham super concentrada, e que isso é uma vantagem. Eu me pergunto se essa capacidade de concentração em algo não é resultado de anos tentando não prestar atenção no meu corpo, no meu ambiente. De entrar na minha cabeça e me dedicar tanto aos meus pensamentos que eu não percebo que meus ombros doem, minhas costas doem, meus pés estão formigando, minhas mãos estão meio dormentes, meu pescoço está meio congelado. E isso tudo porque eu estou sentada em uma cadeira de escritório ergonômica com suporte lombal e lembrando de fazer meus exercícios, não ficar muito tempo na mesma posição e com um soutien que tem suporte extra. Senão, ia ser muito pior.

Voltando aos millenials, eles não engolem esse papo de que "a dor está na sua cabeça", ou que "você que tem que aguentar". E eu os admiro demais por isso. Doenças mentais são ainda mais difíceis de provar do que dor. Eu lidei com ansiedade social e depressão por anos, e nunca pedi ajuda. Eu acreditava que era minha culpa de não estar "dando conta". Ainda não iluminei a ponto de achar que a sociedade e as pessoas à minha volta é que tem que resolver essas questões para mim, mas já acho que minha experiência pessoal é importante e que deve ser respeitada, primeiramente pelos médicos, e depois por todos aqueles que gostam de mim. 

Se eu falo que está doendo, @ médic@ tem que acreditar em mim. Se o treinamento que el@ recebeu diz que não, beleza, eu sou um caso novo, que precisa ser estudado. Talvez seja meu autismo? Talvez porque eu sou mulher, um pequeno detalhe historicamente ignorado pelas pesquisas científicas na medicina? Talvez meu cérebro seja intrinsicamente diferente? O porque vai fazer toda a diferença no tratamento, mas, primeiro, eu tenho que ser levada a sério.

Enquanto isso não acontece, eu vou resolvendo como posso, sem vergonha de expor minhas limitações. Como outras pessoas da minha família, eu tenho distúrbio de processamento auditivo. Isso significa que eu escuto o que as pessoas falam, mas não entendo direito (quem é GenX aqui vai lembrar do "AudiSom, para quem escuta mas não entende bem as palavras."). Pois é, já fiz tudo quanto é audiometria que você possa imaginar, deu tudo normal. O problema não é na captação do som, mas sim em como os sons são interpretados no meu cérebro: eu escuto bem, mas não consigo separar fala de ruído ambiente, ou certos sons [nota: achei alguns artigos que sugerem que este é um problema comum em crianças que tiveram muitas infecções de ouvido na primeira infância; seu cérebro não é treinado a reconhecer os sons direito porque eles chegam distorcidos...]. Na hora de ver TV, eu ponho legenda. Meu celular tá sempre no volume máximo. Bares, shopping cheio, festas e restaurantes com música ambiente são o meu desespero.

Quando eu mudei para o Canadá, resolvi tentar de novo, porque ouvir em outra língua, com sotaques e com as máscaras durante o COVID me transformaram em praticamente surda, já que eu contava muito com leitura labial e contexto para entender. Resultado dos exames: tudo 100% ok de novo. Aí eu perguntei para a médica: "Mas eu continuo não entendendo as pessoas! O que eu faço???" E a resposta dela foi: "Pede para eles falarem mais alto, ou repetirem."

É isso. A solução dela foi: "Faz o mundo se adaptar a você." Eu fiquei chocada, revoltada mesmo. Como eu vou fazer isso? Fiquei triste e revoltada por uns dias, e então resolvi fazer um bottom dizendo exatamente isso: "Dificuldade de Audição. Por favor, fale mais alto e mais devagar." E eu uso em todos os lugares onde eu entender o que as pessoas falam é importante: médicos, lojas, agências do governo. Ajuda mesmo. Não resolve cinema (aqui não tem legenda) e nem conversas sociais, mas, no geral, me sinto bem melhor.

Obrigada, millenials.

P.S.: Estou avaliando outras soluções, como aparelho de audição (que meu pai já usa) e até mesmo um dispositivo passivo que parece interessante (ou um hoax). Vou dando notícias. 

2 comentários:

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